EU, FRAGMENTOS

EU, FRAGMENTOS

Em águas mornas me inclino. Em águas mortas me revivo. Meu amor feito vento invento como águia assustada que intenta voar sob a incerteza das condições atmosféricas. Se já amei seriamente, foi risonho o desfecho – dor de boca e peito. E o desleixo foi procurar nas mãos os pés que desejo.

A poesia me assombra, porque nesta não há tempo. Pelas palavras edifico a moldura que enclausura todos os silêncios. É um labirinto em verso. Eu sou um Minotauro. Assino sobre a minha armadura: “sou incompetente para me despir”, então vivo com essa vestimenta maior que meu corpo e me machuco. Quero tanto viver, mas temo tanto a morte – me saboto, portanto. A dor de não ter é menor do que a de ter e recear perder?

Nu numa sociedade na qual os trajes ultrapassam um caráter qualquer. Qualquer índole é dolosa diante de uma dor sem nome. Quando se é jovem, quer salvar o mundo, quer mudar o mundo. Quando se é velho, quer ser salvo, quer que o mundo não o deixe mudo. Se estou sempre a mudar, então calado não fico, e não dependo de um mundo, porque tenho vários. Varando vou viajar numa transitoriedade estanque.

Uma mocidade estacionada de músculos esguios, teu afago sob o vento que nem ao sol se aqueceu. Penso-te morto; esqueço que vivo. Teu nome cravado nas rosas caídas. Outro mundo é meu. É meu outro mundo. Em mundo meu, sou outro. Resta-me o temor de ser outro. Mais uma visão sobre o natural?

Crucifiquei-me por não saber me estender. Fui varado em respingos de uma tosca roupa. Noutra torcida de mãos, bateu-se mal o sabão. Pedaços de uma lavagem... Na calçada passamos sobre as sombras dos jambeiros. Entre mim e você parênteses. No muro minha pele estirada ficou, por ter reconhecido a inocência, por seres – além de uma árvore – a raiz das palavras que nunca sussurramos.

Morreu quem eu amava e ainda está viva. Ficou gravada num tempo sem a cronologia que põe (des)ordem às coisas. O espelho é o mesmo, mas o reflexo desatou na transgressão dos dias. Por que quero ter controle sobre tudo, ter algum domínio sobre algo? Talvez por não ter sobre mim mesmo a possibilidade de ser maior que a angústia de ser uma potência, feito semente soterrada.

Amor sem paz não é amor. Embora o sofrimento possa erigir, sei-lá-o-que ou cá-bem-sei-o-que, há em rupturas um certo refazer-se que precisamos (des)cobrir. Nessa ambivalência, revela-se que, quando a gente assume a perda, então passamos a ganhar. Enquanto isso, o que se seguem são os passos, mecanicamente, de por onde o outro vai para onde ele for. Não se consegue ouvir a música que a faz lembrar, e o sangue se atordoa porque antes se enlaçou.

O que dói é a desconstrução de todas as expectativas, criaram-se sonhos, transcendeu-se a fronteira do mágico – num mundo de fragilidades é fácil demais idealizar e é bastante difícil demolir os desejos. Mas, em vez de se gritar, pode-se atribuir uma importância aos fatos sem que eles nos impeçam de andar. A vida é movimento, sem este é apenas existência.

Era uma vez um menino encantado com as palavras. Ele era absorvido pelo universo da linguagem e tentava absorvê-lo. Não compreendia como, mesmo sem saber o significado dos vocábulos, sentia o seu impacto. Chorava também ao ouvir músicas estrangeiras, como What Wonderful World, na voz de Louis Armstrong. Ao assistir Kramer x Kramer, o pranto o dominou. Reconheceu-se naquele garoto. Quis colocá-lo nos braços e dizer-lhe que ele não está só. Demorou semanas para me recompor. E conseguiu? Quantas metáforas alguém é capaz de suportar? Quantos signo consegue absorver sem ceder à loucura?

Perdido na zona, palavreio ressonando o significado e o signo. A palavra não é dona de si. Se viemos à tona. Sim, mais que onda - estender a zona aos pós-hedônicos, caricatos. Puritanos e puristas; vamos masturbar os verbos, vamos lamber os sinais. Estaremos na extensão, fora da lona que cobre qualquer tolhimento do dizer. Queremos a palavra num strip, fora do script.

Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.

(Texto publicado no Jornal A União em 7/3/25)

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 07/03/2025
Código do texto: T8279574
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