[Desmorona-se o Tempo]

Caminho pela apertura ascendente da estradinha que passa ao lado do matadouro. Do outro lado da cerca de cinco fios, o gado que vai morrer amanhã cedo me olha. Quisera ter um reciprocidade exata no meu olhar para o gado, assim, com certeza, a angústia da finitude desapareceria e o meu olhar seria mais feliz... será? Mas não posso, e não posso porque eu sei que vou morrer. Castanhos escuros e tristes, tristes com breves lapsos de alegria, são estes meus olhos... nasci assim.

[Admiro-me de que haja neste mundo quem perca tempo com os tristes como eu!]

O ar sufocante cede à brisa fria; entardece lentamente no verão de algum tempo. Qual tempo? Este é um tempo desmoronado, escoado da minha imaginação, ou vivido num êxtase? Não sei que tempo é este, pois não há referências à minha volta, exceto esta que me dão o meu corpo, as minhas pernas, os meus pés descalços: sou um menino, ou estou no corpo de um menino. Mas não estou tão certo disto; aliás, viver certezas nunca foi um hábito meu; antes, eu vivo as dúvidas. Na dúvida, duvido mais ainda: tenho a obsessão da pergunta certeira, que não leva a uma resposta definitiva - tudo que me importa são as perguntas, as perguntas! Também, pode ser que eu seja um menino sonhando-me velho, ou um velho sonhando-me menino. Mas, como pode um menino pensar e sentir como um velho? Ou será que nasci assim... velho? Este sonho é falso? Mas o que é um sonho falso, afinal? Existe? A duração do sonho... ou sonho da duração? Eu duro... tu duras... ele dura... todos temos um sonho que dura, dura, dura... e vale o que vale qualquer falsidade banal!

[ Pelo menos do ponto de vista do conhecimento, a vida é como um vetor: tem sentido e direção; cada geração vem sobre a cabeça da antecedente. Portanto, pensando na vida vetorialmente, um ser humano, quanto mais jovem, mais velho é, e, presumidamente, mais sábio! Será que alguém conseguiria formular um frase mais óbvia, mais inútil, mais tola que esta?! Duvido... Haveria alguma coisa, além da morte, capaz de aniquilar o tempo? Talvez o amor... Quando eu amo intensamente uma mulher, o tempo não mais goteja, perde o veneno, o amargor... desmorona-se?? Será? ]

Caminhava perdido nestes pensamentos, quando, de repente, três rochas bem maiores que eu, surgem no topo da colina e vêm rolando estrada abaixo em minha direção. Cessam os movimentos das coisas, cessa o sopro frio da brisa. As três rochas se aproximam de mim; os barrancos são muito escarpados, eu não terei como escapar, pois juntas, elas tomam toda a estrada, não dá para eu correr entre elas.

À medida que descem pela estrada, elas se entrechocam, rebatem nos barrancos e repicam em grande saltos no leito duro da estrada encascalhada com tapiocanga vermelha. Se isto for um pesadelo, serei esmagado a menos que eu acorde... Se for real, estou morto! As rochas se aproximam; grito, grito... mas é inútil, ninguém conseguiria me ajudar; grito, grito... mas não ouço a minha voz, parece que não há mais ar; estou num vácuo. Eu deveria estar escutando o fragor dos choques das rochas, e, literalmente, eu vejo, eu sinto o estrondo das rochas. Mas não ouço absolutamente nada! Estarei morto?! Não vejo sangue, não sinto dor - terei morrido, sem me ferir?! Os mortos não vêem, não ouvem, não sentem nada. Não entanto, eu vejo... e vejo estas rochas que não cessam de vir sobre mim, pela calha profunda desta estrada avermelhada!

Torno a olhar o gado... e agora, vivo a certeza de que vou morrer antes do gado; na verdade, vou morrer agora mesmo, quando estas rochas esmagarem o meu corpo! O gado me olha, agita-se, seus olhos brilham mais e mais, o gado vê as rochas se aproximando velozmente, e sabe que eu vou morrer. Sabe? Desmorona-se o tempo quando as pedras chegam...

[Ah, como são doces estas jabuticabas que levo na minha carrocinha de madeira, como são doces! Que doçura de pretume!! Até eu chegar em casa, já terei dado cabo delas! Antes, meu olhar se enfiará pela brecha de um portão que dá para rua, e eu me perderei no triângulo escuro daquela bela mulher que se banha na torneira do quintal. Ah, como me atrai o mistério da escureza, como são doces aquelas jabuticabas!]

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[Penas do Desterro, 15 de janeiro de 2008]