Sobre a morte

Sobre a Morte…

Eu sou Victor Liatunga. Apóstolo Victor Liatunga. Irmão Victor Liatunga. Dr. Victor Liatunga. E já vivi tantas faces, tantas histórias, tantas mentiras e verdades. Eu fui o bom homem, e também o mau pastor, a espada que cortava ou a mão que acolhia, o falso profeta para uns, e o bom pastor para outros. Para muitos, uma lenda de fé; para muitos, um grito vazio. Mas em todos os papéis que já desempenhei, eu nunca menti, porque tudo o que eu disse, tudo o que preguei, aconteceu, com a crueldade que a vida exige das palavras.

E agora, estou aqui, olhando para o abismo que me chama. Esta jornada, esta viagem final, a última, a sem volta... Eu falo, mas é como se minha voz ecoasse na eternidade do silêncio que logo tomará o lugar de meu corpo. O calor da vida se dissipa aos poucos, a visão se desfaz e já não sei mais o que é estar aqui ou não. Tudo o que me restou é a antecipação do encontro com a morte. Ela, a implacável, a fiel, aquela que sempre esteve à espreita, esperando o momento certo.

E eu não temo. Como poderia? Não sou mais um homem comum. Não sou mais quem fui. Sei o que vem depois, sei o que meus olhos se prepararão para ver. Afinal, vi tudo o que podia ver dentro de mim. Os horrores que os vivos não ousam enfrentar, os gritos abafados que o silêncio da morte vem silenciar de vez. Mas o que sei da morte é o que todo homem sabe, só que não ousa lembrar. Ela se arrasta nas sombras, no breu da noite, em cada segundo que se escapa, na agonia de não saber como será a última respiração. Mas ela chega, inevitavelmente. E com ela, tudo o que chamamos de vida se dissolve na escuridão.

A morte será o verdadeiro despertar. Porque não vivemos enquanto não morremos. As ilusões se despedaçam, as máscaras caem, a tragédia da existência se revela nua e crua, sem adornos, sem consolo. Não há como se esconder dos próprios pecados. Cada tropeço, cada vergonha, cada falha. Será o que me resta depois de tanto tempo em que vivi entre sombras e luzes. Pois não posso mentir sobre o que vi, não posso enganar nem a mim mesmo. Não posso vender ilusões, nem eu mais, nem os outros.

Eu fui aquele que andou pelos vales da dúvida, da dor, da perdição. Eu vi almas se perderem, vi o breu do desespero, e todos aqueles que um dia tomaram as palavras de Deus como se fossem canções de ninar, esqueceram que atrás de toda oração há um preço, e quem paga é a alma. Eu os vi entregando a alma em troca de migalhas. E vi o futuro se desfazer, as promessas se perderem nas ruínas do impossível. Quando os homens olham para o alto, esperando uma intervenção divina, não sabem que Deus os observa de uma maneira que jamais entenderão até o último suspiro.

E agora, olha onde estou. Às portas de um reino além da vida. Longe da vaidade de um título, longe da reverência das palavras. Eu serei nada mais do que pó, como sempre fui no fim de tudo. Vago, esquecível. Ou talvez não. Talvez me lembrem, talvez esse nome, que para alguns foi motivo de esperança, para outros de desilusão, ecoe por mais algum tempo. E será meu martírio, minha punição ou minha glória? Não sei, não importa. Eu estarei além disso.

Agora, falo da morte não como um espectro distante, mas como uma velha amiga, que me acompanha nas madrugadas frias, na solidão dos pensamentos, na violência do lamento. Ela tem o cheiro do final, um cheiro de carniça, de cadaverina, que se mistura com a lembrança amarga do passado, e ela não hesita. Ela vem pela noite, deslizando pelas sombras, e leva a alma de quem já não tem mais medo. Não mais o temor daqueles que ainda acreditam em promessas de um amanhã.

Eu viajei sem volta uma vez, e com ela, com essa morte que se alinha nas páginas do meu ser, eu entendi que ela nada mais é do que a conclusão inevitável, o peso de todas as escolhas que fiz, todos os caminhos que percorri. E quem me seguiria, saberia que a vida não era de fato mais do que uma preparação para este fim. E qual fim? Não sei. Só sei que é o único destino que jamais podemos desafiar, a única coisa que nos pertence com tanta certeza quanto o peso da gravidade.

A morte... Ela será a última sentença da minha vida, um grito final antes de chegar ao lugar onde as promessas desaparecem como névoa. Mas eu não tenho medo. Não posso. E de minha parte, vou saindo de cena.

Não deixem palavras, meus irmãos. Não há mais palavras a dar.