Fluxo Poema
Queria escrever algo, talvez um poema, embora não saiba. Em seu âmago, queria apenas escrever, não sabia por onde começar; começaria do útero de sua mãe, ou de como seu pai a abandonou, talvez do final, ora poderia começar da infância, da doce infância interiorana, mas comum a quase todos, infância de atravessar os lençóis pendurados ao varal, que sua mãe lavara há pouco, de cirandas na rua com os amigos, importunar os bichos do quintal. A verdade é que não sabia colocar a infância no papel, trazer a umidade dos lençóis ao varal à pele de quem lê, quem lê? Ou o som dos bichos sem sossego, amigos dos meninos; não sabia o que queria escrever, mas escrevia, sem endereço nem a quem, pois não tem ninguém, também não sabe escrever cartas, escrevia porque queria viver, viver aquilo que não viveu, escapar da vida horrível que tem, dos desafios que enfrenta, de não saber escrever. Não é nenhum gênio, não é Machado nem Lispector, mas escreve, escreve sem esperança de fugir e não foge, pois tudo o que escreve é o que vive ou não viveu, não sabe não escrever sua melancolia, fazer sua caneta transbordar a tinta de seu coração; quer escrever um poema, quem há de ensina-lo? Não escreve ou escreve tudo, mas não aquilo que quer, não pode, não sabe, ninguém ensinou-lhe; o que não pode falar passa ao papel, também não sabe isso, não sabe nada, nem o que escreve se sabe, porque não escreve, sente-se.