A moça feia

Um dia decretaram-na feia na vida. Não gauche, não coxa, não torta. Feia.

E a feiúra esparramou-se nela, sem emenda. Não havia AAS infantil, de um dulçor ardido, que lhe reformasse a cara feia, a alma feia, o coração escuro. Ficou feia de amargo. De triste. De fatal.

A tristeza lhe ensopava em si. Soluços de uma melancolia teatral. Dores em toda parte e em parte nenhuma. Uma morte sempre espreitando e que nunca dava as caras. Uma amargura contingenciada, a conta-gotas, sempre salpicada sobre o papel. Ou eram lágrimas, ou palavras. Soube-se poeta cedo. Ser poeta é tão bonito até para uma menina feia. Secretamente feia. Intimamente feia. Honrenda. Cruz credo!

Nesse devir poético, embebeu-se em funduras próprias. E ao achar um canto seco em seu miolo, procurou numa palhoça, num monte de feno, lá no obscuro de dentro, a agulha que remendasse sua cara mal-apessoada, sua alma hedionda, seu coração caliginoso. Soube de remédio nenhum que curasse feiúra, nem de alguma gambiarra que reformasse caras desengraçadas como a dela. Essa coisa de ser feia só aumenta. Mais ainda para quem maldiz o espelho.

Entretanto, sendo poeta, desfrutava da vista exterior, feito uma janela na qual debruçava encantadoras olhadelas. A distorção peculiar de sua vista defeituosa, tornava o mundo um deleite sem igual. Fora de si era tudo estonteante. Via n’alguma folhinha besta caída do galho um palavreiro sem fim, de dizeres e mais dizeres avantajados na lindura. Enxergava nas asas da borboleta uma micromantinha de tintas ousadas, no pincel fino da delicadeza. E nos passarinhos então... Ah! Passarinhos eram seu caso de amor com Deus! Uma veneta de felicidade que lhe decorria num desenfreado, só de olhar!

Do tegumento pra fora era horrorosa, do tegumento pra dentro, uma flor. E de malograda assim, nunca embunitou as cascas. Tinha dores agudíssimas de desprezo. Um buraco no peito precisando dos méis de amor. Só queria ser aceita, gostada. E seu palavreado era a pulcritude que largava nas esquinas. Despejava ternuras onde ia, esparramava farturas de gentilezas e bondades. Sofria a desconsideração dos outros, só queria ser considerada. Naquela bestajada dos abaladiços!

Não endireitou sua coluna torta, não acertou seus pés pra dentro,

nem corrigiu a curva da bunda fugindo de tapa. Não trocou de cara, nem conseguiu dar um jeito naquela barriga que pendurava na prona. Mas fez um serviço conseguidor de proveitos, levou alguma boniteza a quem se atreveu com ela. Tentou mostrar como enxergava as deformidades das coisas, naquele indubitável argumento de paixões exacerbadas, coisa fácil, banal e até vulgar para quem tem olhos de ver poesia.

A moça decretada por feia, foi feia a vida inteira. De uma feiúra de revestimento, sem restauro; pois nunca ousara desafiar o espelho, seu algoz. Mas de uma coisa teve certeza, de dentro, só ela conhecia a vista. E era larga! De um esplendor, que nem te conto! Ela me contou!

 

 

Assista em: https://youtu.be/6vuJlgGNBp0?si=BEKWfcCq43oA5hhk

 

Cyntia Pinheiro
Enviado por Cyntia Pinheiro em 12/12/2024
Código do texto: T8217323
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