Sem razão - prosa
O sol brilhava naquela tarde de domingo. Estávamos a sós, eu e ela, o que era coisa rara; deitados juntos a um gramado. Lá, apreciávamos uma música diferente: riso frouxo e conversa fiada - coisa rara também. Cada movimento, uma melodia. Não me lembro de muito, confesso, mas aquele olhar permanece. Puro e afiado como espada de dois gumes: penetrava a alma e o espírito. Matava-me. Queria sair, desviar meus pensamentos, viver uma vida só para mim, solitária, mas não podia mais. Já havia sido tragado por aqueles fios dourados. Talvez, no fundo, nem quisesse mais sair. E ali, deitado à beira da morte, com o coração acelerado, fui ferido de tão grande amor, com tão singelo olhar que só havia uma pergunta em minha mente: por que? Por que tanta sinceridade e apreciação? Qual seu motivo? Se havia uma razão para aquele olhar, estava além da compreensão. No fundo, era isso que me feriu.
Perguntei com lábios trêmulos, e ela respondeu com uma simples risada: 'Não há'. Simplesmente não existia motivo para estar ali, nem continuar. Contudo, ali estávamos e continuávamos. Ríamos sem precisar e perdíamos tempo, mesmo que necessitássemos dele. Era poesia pura. E, bom, não sei dizer o que fizemos depois. Não interessa — a verdade é que o que se vive numa tarde ensolarada pode valer uma vida toda. Sem razão, perseveramos, sem olhar para trás, nem para frente. Até que o pior, mas inevitável, aconteceu: choveu.
A chuva, inexorável que é, varre tudo que vê. Só sobra rasto. Memória. É, ganhei razão. E com ela, motivo para tudo. Para chorar, precisa de algoritmo de dor. Para rir, só com decisão judicial e trânsito em julgado. Para amar, só com contrato depositado, assinado e registrado no cartório. É. Sinto falta de ficar sem razão por aí. De viver um pouquinho mais: usar guarda-chuva. Às vezes, penso que até devesse voltar para aquele gramado, olhando para aqueles olhos. Sem razão; só com o coração.
Então, quando penso nisso, um pingo me atinge.
E volto a andar.