Reflexões de um pai
Olho-me por inteiro e percebo a verdade desconcertante que sempre esteve aqui, como o sintoma da minha inadequação ou o ruído desviante que acompanha todas as vozes: a constatação inequívoca do meu ser dobrado, numa face que me enxerga e noutra que sempre se escapa. Neste presente justo de carne e espírito, se acompanho, apequenado ao mínimo, este sentimento ávido, e o circulo, impulsionado por suas quedas e ascensões, quando o findo, já não se dá, já é outro, e me repito, e me repito, e me esgoto. Mas fica a impressão que, já esculpida, transcende sua existência na arte que dirige meus olhos, que, percebendo, é percebida; e em tudo que é, também sou. E quando me atento, deste objeto se fazem vários, e em cada um deles, muitos, num labirinto infinito de ciência e desejo.
Meu corpo simples de tempo espalhado conforma-se às paredes, ao piso, aos talheres; conforma-se à fresta desta janela que observa a estrada que aponta o rio. E só o encontro por dissonância, pois corro estradas de sombra e sonho, catando os cacos de quem se oculta. Mas ele, longe do verbo, sem régua ou esquadro, sabe que a vida é abandono, na incessante presença em tudo e na morte. Confronto sua lei, pois te quero ser, mas, me sabendo inextenso, me conformo ao retrato que em si harmoniza o meu tempo profundo.
Essa casa de dois mundos, no eixo que lhe revela, expressa o mundo e tudo lá fora: a cidade, as famílias, a minha, meu filho, minha esposa, que te queria Maria no colo e no quarto. É noite e dia, no tempo que me gravita, cisão dinâmica de espaços dobrados, e todos te quero e te quero e preciso. É brasa queimando no instante em que escapo. Quero incendiar as fronteiras, ser um só corpo, num único tempo em que nada cala, mas se conforma em brutal realismo.
Assim, indistinto no dado que me informa e em seus devaneios de tempo e espaço, vejo-me definido no olhar que me encerra e conjuga, num lance, superfície e suporte. E, aqui, intuindo qual ser me fez obra, revogo as certezas, minhas queixas e dores. Pois, como criador, sou meu navegante, nos dias de sol e nos vultos da noite; preencho minha obra de tempo e sopro, e nada é velado naquilo que aflora: Gildete é Maria, meus filhos, a carne, e tudo lá fora são só minhas partes – o rio, a estrada de mato e trânsito, o rio, meus bichos; o rio é meu rio, o mato é meu mato, e Gildete é Maria. Mas Gildete é teimosa e não sabe que sabe; já se diz artesã por geração e não enxerga Maria que a observa e se esconde, reinstaurando o processo de tempo enquadrado.
Mas agora, aberta a janela que me liga à casa que liga o quintal que liga a estrada que liga o rio que liga o mundo que sai e deságua em mim. Vejo-me indiferente à minha formatação, que, desnaturada pela distinção, revela a imperativa incomunicabilidade daquilo que, por expresso aqui, é expresso lá numa linguagem de silêncio sádico. Assim ciente, deixo o tempo falar em mim e no barro em que moldo a voz que não é minha, mas de tudo que está em consonância com o todo ao qual me vinculo inexoravelmente