HEROIS A CAVALO

Meus doze anos iniciais da existência, a doce para uns e amarga para outros intitulada infância, foi uma fase com certa liberdade. Experiências, aprendizados, inocência e surpresas. Passei-a em uma pequena cidade de um dos vários interiores mineiros. Ali vivi a experiência do pé no chão, na terra batida, nadei em cachoeiras e córregos. Pesquei, andei pelo mato, andei de carroça e fiz tantas outras coisas que podemos sintetizar que foi uma infância semirrural salpicada de urbanidade e festas populares.

Conhecia quase todo mundo e era conhecido por todos, tendo o nome de meus ancestrais como o sobrenome de meu cognome. O menino da Aparecida do Doca, do Zeca Bitita. Vendi muita coisa de porta em porta, leite, picolé, verduras. Ajudava o padre na hora da missa, nas procissões, tocando o sino e fazendo fumaça. Trabalhei no comércio. Era difícil não ser conhecido numa paragem de poucas almas e fogos (casas).

Nesse período de aprendizado e fantasia, na atmosfera dos folguedos de minha terra, num misto de religiosidade e cultura secular, tínhamos nossos heróis, nossos ídolos. Santana é terra festeira. O ano todo tem movimento de festas, festejos e folguedos. Acontece em torno das igrejas, nos cantos em campos, nas praças e clubes, nas ruas desfiles com sons e movimentos de cores e gente, com comes e bebes. Mas um, especificamente que acontece no carnaval, dava-nos, na infância, munição para muita fantasia e admiração para querer ser e fazer tal qual os seus protagonistas. Era a Cavalhada. Um folguedo cheio de cores e sons, movimentos, adrenalina e expectativas.

A Cavalhada é um evento cultural religioso, que fantasia e recria no interior sul-americano acontecimentos europeus do período medieval, onde Mouros e Cristão lutaram em várias batalhas. A representação simula combates, a paz selada e uma disputa esportiva onde cavaleiros demonstram sua destreza equestre e habilidades com uma lança a acertar a argolinha que se encontra entre dois mastros. Os Cavaleiros que alcançam o feito são os heróis do dia.

Heróis..., a cultura nos apresenta tantos. No século XX foram tantos, que inventaram até os super heróis. Frutos da imaginação de seus criadores, se tornaram produtos comerciáveis e seres a povoarem nossa imaginação. Os principais foram americanos e japoneses como Superman, Batman, Mulher Maravilha, Jaspion, o Esquadrão Relâmpago Changeman, e outros. Na infância qual menino ou menina, principalmente os meninos, não sonhou ou fantasiou que era um deles em suas brincadeiras de aventura pela imaginação?

Em Santana, além desses comercializáveis, tínhamos os nosso super-heróis locais. Os cavaleiros da Cavalhada. Montados em seus cavalos adornados com cores e sons, havia uma companhia que soava no ritmo do trote, os protagonistas do espetáculo usavam fantasias de veludo com desenhos feitos de lantejoulas. Elas formavam um desenho, alguma insígnia dando a fantasia uma característica personalizada. Usavam também um chapéu revestido do mesmo veludo da roupa, com penacho e adornos de lantejoula que brilhavam ao sol. Compunha a indumentária também, uma máscara que cobria todo o rosto gerando um ar de mistério. A imagem do cavaleiro, todo enfeitado cheio de cores e brilhos, de botas e esporas, grande, em seu belo animal, era a imagem do verdadeiro herói, forte, corajoso que resgataria a princesa sequestrada e venceria o inimigo. Pelas ruas de pedra da cidade desfilavam triunfantes, ao som da banda que tocava quadrilhas e marchinhas carnavalescas.

Nós, meninos desse tempo, tínhamos nos cavaleiros nossos heróis. A quaresma inteira passávamos brincando de “corrida de carnaval”. Com cavalos de pau e máscaras caseiras simulávamos a Cavalhada adulta. E a disputa por usar o nome do herói era grande. Os que tinham ganho o prêmio por acertar a argolinha, três por ano, eram os nomes mais disputados. “Vou ser o Arturzinho!” “Eu o Tista, Zinho do Efraim, Juninho do Delinho, Rafael da Inês, Toninho do Delei, Celsinho, Donizete e Joaquim Pieroni...”. E por aí, ia a listagem toda.

Esses eram nossos heróis da infância. Ao menos durante a quaresma, tempo que sucedia o evento adulto, queríamos ser esses heróis locais. Certa vez meu pai, que era pedreiro, foi trabalhar na fazenda de um desses heróis. Um não, eram dois, os irmãos Pieroni. Num sábado, fui também. No curral do retiro, tomei leite espumado com um deles, o Joaquim, que foi muito gentil dando atenção, conversando e mostrando a fazenda e seus animais. Olhava-o mudo, de cabo a rabo, com meus olhos infantis. Estava diante de um deles, um de nossos heróis. Foi só uma manhã de sábado na fazenda dos Pieronis. Mas valeu por uma semana inteira, eu todo prosa, a contar para meus amigos.

Gleisson Melo
Enviado por Gleisson Melo em 12/11/2024
Reeditado em 12/11/2024
Código do texto: T8195120
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.