PROLETÁRIA

A música dos corpos se tornara ávida. A criança dormia na mesma cama, minada de sonhos e medos. Na televisão, em preto e branco, vira um filme de terror na noite anterior. Era manhãzinha alta quando o desejo vazou num copo de luzes, com pouquíssimos movimentos dos raios. Boca não disse palavra. No ar, o galo rouco do vizinho exercitava o canto entrecortado. Era junho, primeiro turno da jornada, época de safra, e a sirene da fábrica convocava os operários ao trabalho. Todos exerciam suas funções no mundo. A vida novamente era música na vida plácida de começos e alguns precários fins. A cidade funga nas chaminés e a criança tosse, rouca como o galo do vizinho. Ainda era lusco-fusco quando o desejo vazou num copo de luzes. Mais uma vez a ávida música. E os desempregados brincaram com os próprios corpos: era algo ao alcance da mão, disponível. Tudo se cumpria no novelo dos dias. Até o sol abrira o seu olho tímido de invernias. Instantes depois, no quentinho da cama, o casal fuma marijuana. Ainda era manhãzinha quando o vento lavava o rosto dos transeuntes e os garis eram ágeis espanadores – aflitos – em suas tarefas de lavar o ventre das ruas. E a cachola do observador atento produzia esta displicente novelinha proletária.

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2006/2009.

http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/819225