"Amores"

Sempre em ânsia

Pela hora

Da chegada

Dessa criatura

Que tanto amo…

Criatura?

Sim.

Porque não?

Todo o ser humano

É uma criatura

Uma bênção de Deus

Ou uma dádiva da Natureza

Trabalho

Penso no seu rosto

A cada instante

Nesse jeito calmo de ser

Com um cheiro de malícia

Repleto de sensualidade

Esta alma vive intensamente

Cada momento

Da sua existência

Individual e colectiva

Como se cada instante fosse

O último do resto da sua vida

Respira e expira a própria vida

Sempre a inspira

Pelas largas narinas

De um rechonchudo nariz

Postado no seu rosto moreno

Moreno – bombom

Aí estão apensos uns profundos olhos negros

Que vêem sempre mais longe

Nos olhos dos outros

Quando os observa

Na mais profunda intensidade

Sem pestanejar

Tão fixamente

Como as estrelas

Que no céu estrelado

Mantêm o seu brilho

Denso

Quase eterno

São pérolas negras

Fustigam o meu olhar

Trespassam-me

Visceralmente

Há uma certa magia

Em todos os seus actos

Em todos os seus gestos

Na sua voz grave

Doce e terna

De sons gerúndios

Essa magia apaixona,

Fascina

Atrai

Como um hímen

A limalha de ferro

Penetra-me

Indelevelmente

Envolve-me

Num misto de sedução

De prazer

De felicidade

E de ansiedade eterna

Perpetua-se em cada sinal

Em cada movimento

De um corpo deambulante

Exemplificante da singularidade

Da alma que o habita

Tão livre como a ave

Que pode abandonar a sua gaiola

Mas não mais a sua prisão

Vagueia

Quiçá

Sem destino

Pelas múltiplas paragens da Mundo

De todos os destinos humanos

A atracão que exerce

Estranhamente intensa

Torna-se inexplicável

Indizível

Inefável

Pertence ao domínio inviolável do SENTIR

Excede todo o campo semântico

Tem um toque diferente

Como se pertencesse a outro espaço

A outro tempo

A um outro lugar

Extravasa a vulgaridade

De todas as possíveis vivências quotidianas

Mantém tudo no seu preciso lugar

Em si residisse

Um topos singular

E todo o desvio é assumido

Como uma violação inevitável

A sua presença

Tão envolvente

Tão cheia,

Tão redonda

Nada deixa de fora

Aí permanece

Como a aranha

Na sua própria teia

Os seus movimentos

Rodopiam nas malhas

Dessa gigantesca trama

Abrangedora de tudo o que o rodeia

O seu estar

Presentifica o próprio Universo

Só existíssemos os dois

A realidade

Entra em nós

Totalmente

Nada,

Absolutamente nada

Pode estar fora do nosso alcance

Emerge a sensação do Absoluto

Da Totalidade

Nós

E o Mundo

Somos o mesmo

Todas as dualidades desaparecem

A união das partes é plena

A divisibilidade não tem lugar

Em nós

Permanece o Cheio

O Aberto

Em perfeita comunhão

E a Vida,

Apesar de todas as adversidades

Torna-se tão simples

Tão singela

Tão leve

Tão radiosa

Tão apetecível

O sono

O sonho

Não é mais efémero

Resplandece

Num eterno momento de serenidade

De paz

Tão sólida e inevitável

Permanecemos em união

Até ao íntimo do nosso Ser

O Mundo

Penetra-nos

Na mais pura e bela gratuitidade

A “paz perpétua” assoma

Onde se gera a agonia

A ansiedade

A angústia

Quando extravasa

Pelo álcool

O néctar dos deuses

Os limites da racionalidade

Da sobriedade

Da consciência

São esses os momentos de excesso

Da pura embriaguez catártica

Dessa criatura que tanto amo

Os meandros

As fronteiras

Do seu pensamento,

Esbatem-se

Até às lágrimas

As ideias

Os sentimentos

Os pressentimentos

Flúem

Transbordam

Como um rio

Do seu próprio leito

Nele

Um desregramento de caudal

Que só a embriaguez faz despoletar

Volta ao silêncio

Ao silêncio da voz

Nunca

Ao silêncio do pensamento

São momentosos de introversão

De uma lama que está para além de si

A catarse da embriaguez

Voltará

Brilhará

Com tanto sofrimento

Com tanta angústia

O mundo parece desabar

A queda é efémera

E do caos se ergue

De novo

A ordem

“Acorda para a realidade”

Com a necessidade

De se evadir

É o comportamento característico

De todo o ser sensível e consciente

Das atrocidades da Existência humana

Em permanente sobressalto

Urge esquecer tudo

Entrar numa outra ordem

Num outro espaço

Trazido por todos os alucinogénios

A ressaca

Não é assim tão terrível

A lucidez nunca é

Perdida

Apenas desviada

Para outras paragens

Que a imaginação

Requerer percorrer

O Mundo

Os Homens

Obrigam-no a esse esquecimento

Em prol da mais efémera ilusão de serenidade

Nesses momentos

Torna-se um outro de si próprio

O seu corpo

Lânguido

Derrubado

Perde toda a sua volúpia magistral

Vacila entre o Ser e o Não-ser

Entre o Tudo e o Nada

Penetra

Hiperbolicamente

Nas entranhas de tudo

Qual cobra

No seio do silvado

Depois de estarrecida

Aí permanece exposto

Desarmado

Exausto

Não tem mais forças

Para se erguer

Quebrou todos os escudos

Tornou-se indefeso

Confunde-se com o próprio chão

Onde caiu

E amoleceu

Instantaneamente

Aí permanece estendido

Com um olhar amortecido

Semicerrado

O excesso assoma

Espelha a aura

Invisível da sua alma

Dissolvida

Despedaçada

Espera um outro reencontro

Um outro renascimento

Entre tantos outros já passados

Entre tantos outros que

Se adivinham…

Isabel Rosete

(Dedicado a um ente muito querido, já falecido pela embriaguez do álcool)

02/02/01

15/01/07