O último vôo
O vento me rasga a pele como lâminas de vidro, meu corpo despenca em uma velocidade que o tempo já não conta. O céu, outrora imenso e sereno, agora é um abismo que me engole. Estou caindo. O chão não é uma possibilidade, mas uma certeza. Ainda assim, enquanto o mundo inteiro se desintegra ao meu redor, tudo o que vejo é vida. A minha.
Cada momento brota na velocidade de um sussurro, cortando a queda em fragmentos que não podem ser evitados. Minha infância, escondida entre bichos e árvores que pareciam tocar o céu, os primeiros passos inseguros, quedas que pareciam o fim do mundo... tudo volta, nítido e distante, como uma fotografia gasta. Naqueles momentos eu já caía, mas não sabia ainda. Pequenas quedas em direção a um futuro que, agora, se abre diante de mim como um abismo final.
Lembro das mãos que segurei e das que soltei, das palavras não ditas, as que machucaram e as que curaram. Amores que me deram asas, desamores que me quebraram, deixando-me despedaçado no chão. O tempo corre, mas nesta última queda não há pressa. Vejo os erros como cicatrizes brilhantes no tecido da minha existência, cada um carregando um significado que só agora, perto do fim, consigo entender.
Os olhos ardem, não sei se é o vento ou a saudade. Então, a vertigem dá lugar a uma calma inesperada. Caio, mas não tenho mais medo. Nessa quietude, percebo que não é o chão que se aproxima, é o passado que liberta. Ao revê-lo, sinto que todas as quedas foram ensaios, as dores, lições. Cada instante me ensinou a voar, eu que sempre temi o vôo. Era isso que faltava: o olhar para trás, o resgate de mim.
De repente, o chão já não existe. O pânico desvanece. Minhas mãos, antes cerradas no vazio, agora tocam o ar como quem tateia o infinito. As batidas do meu coração, antes pesadas e frenéticas, desaceleram até encontrarem um ritmo conhecido, ancestral e primitivo. Sinto algo diferente – algo que sempre esteve ali, esperando ser descoberto. Não estou mais caindo.
O vento, antes violento, agora me envolve como um abraço antigo. O vazio se preenche. E num instante que não sei nomear, percebo: já não temo o impacto. Não haverá impacto. Fecho os olhos, e quando os abro novamente, não estou mais caindo, flutuo.
O último vôo, enfim, é o primeiro.