Talvez eu não seja um anjo
Acordo toda noite com o mesmo peso no peito, algo que não consigo nomear. Tento abrir os olhos, mas a escuridão já está lá, me envolvendo, como uma nuvem densa que não se dissipa. O silêncio é ensurdecedor. Me pergunto: por que continuo aqui, entre o tempo e o nada, flutuando em uma existência que não parece pertencer a lugar nenhum?
Sempre fui envolvido pela ideia de que minha alma tinha um propósito. Fui criado acreditando na luz, mas agora, quando tento lembrar o que era essa luz, vejo apenas sombras. Sempre me disseram que eu era um anjo, um milagre, ou algo próximo disso. Uma criatura da harmonia, da paz. Mas o que é paz senão a ausência de conflito? E no meu peito, o caos nunca cessa.
Há uma inquietação no ar, como se o próprio universo estivesse desmoronando ao meu redor. As estrelas, que costumavam guiar meus passos, agora parecem uma poeira distante, imóvel, morta. É como se eu tivesse me perdido em algum ponto e nunca mais encontrado o caminho de volta. Ou talvez nunca tenha havido um caminho, apenas a ilusão de um.
A noite se arrasta, e as horas são apenas uma repetição de vazios. O relógio não avança, apenas ecoa, como um som abafado que vem de dentro, um sussurro que cresce. Esse som me pertence, ou talvez eu pertença a ele, como um chamado que me faz questionar: o que realmente sou?
Lembro-me das histórias que ouvi, sobre almas corrompidas que perderam o brilho. Seres que se desintegraram nas próprias angústias, transformando-se em espectros do que um dia foram. Eu sempre pensei que era diferente, que a luz dentro de mim fosse eterna, mas e se a luz que vi fosse fogo? Um fogo que consome e queima, mas não aquece?
Há uma força estranha no meu interior, como se algo rastejasse por baixo da minha pele. Não sei o que é. Algo deformado e retorcido, que clama por liberdade. Algo que sussurra que sou muito mais do que apenas um reflexo da bondade que esperam de mim. No começo, ignorei, mas esses sibilos não param. Eles vêm nas horas mais profundas da noite, quando tudo parece já ter adormecido - exceto eu.
E é então que percebo. A verdade que sempre esteve ali, à espreita, esperando para emergir. Eu nunca fui o que pensei ser. Essa pureza, essa calma que um dia acreditei ter, eram apenas véus finos cobrindo o abismo.
Anjo? Talvez eu nunca tenha sido um. Talvez o anjo fosse a máscara que usei para me esconder do que realmente sou. E o que sou agora é claro, límpido, como a superfície tranquila de um lago escuro. Eu não fui expulso de lugar algum, porque nunca estive no céu. Sempre estive aqui, nas profundezas, habitando esse corpo que veste formas humanas, mas que nunca foi humano.
Agora entendo. O fogo que sinto não é luz, é a combustão da minha própria essência, alimentada pelo desespero, pelo vazio. Sou feito de trevas, costurado pelo medo, pela dúvida e pela angústia que sufoca. Me desfaço aos poucos, como um vulto que se desintegra no ar, e o eco de meus pensamentos é o único som que restará quando eu desaparecer de vez.
Não sou um anjo. Talvez eu nunca tenha sido. Talvez, na verdade, eu seja o que sempre temi ser. Um demônio.