ESTRADA

ESTRADA

Nasci na fria estação hibernal, entre as montanhas, sob o brilho dourado do sol tropical, regatos borbulhantes acolheram-me às suas margens, ao sonoro coaxar de bufonídeos hospitaleiros que, afetuosos, deram-me fraternais boas-vindas; cresci à sombra daqueles jacarandás exuberantes, que ainda adornam o imenso platô azulado, inclinado ao transbordo sobre o largo talude cis-montana. Gorjeios melodiosos, em profusão, encantaram-me os dias. Com os animais da floresta constituí a fauna típica, sorvi águas turvas dos arroios sazonais, indiferente ao império da regra e do limite. Integrado à natureza, era um dentre seus elementos mais notáveis. Vida e saúde vinham sob a chancela da abastança e da plenitude, uma realidade plasmada em edênica utopia.

Contudo, vigoroso e soturno inverno fizera-me a décima-quinta (15) visita a iluminar-me a razão, em especial, onde não lhe concernia; guiar-me os passos, sobretudo nas trilhas nebulosas do infactível. Vieram-me, então, os óbices imponentes da lógica que me escapavam à fluidez do tempo, negando o ancoradouro inato do crivo consciencial; os exíguos subsídios vertidos da experiência pareciam esvair-se no vazio da expansiva imaginação. Sem compromissos instados por norma ou tradição, navegava às bordas do calendário, ao fôlego suplicante da terceira margem.

Em atmosfera dourada os ventos da promissão sopravam-me a face, encorajavam-me ao horizonte, ao encontro do ilusório amplexo céu-terra. Por intuição, seguir meu prévio azimute era sina e desejo, que a duvidosa certeza distinguia e acomodava com harmônica e admirável exatidão. Autoconfiança excedia-me os limites à revelia do óbvio e das supostas verdades.

Acima das contingências transbordava, altaneiro, o otimismo ingênuo e pretensioso, surfando confiante, nas ondas da esperança, desafiando o improvável e expondo o pretenso troféu dos vencedores, enquanto a lucidez do mundo albergava a magistral aventura de viver. O fracasso, afecção dos pávidos, refletia a morte, decorrência para a qual julgava-me imune. Escudado, sentia-me portentoso e imortal. Desejos excêntricos eram projetos exequíveis, vinham-me chancelados à realização compulsória, sem os aclives súbitos do cotidiano ético. Sem os pés no chão permanecia em inconsciente levitação imaginária.

Entretanto, as essências maturadoras evoladas da terra, ao contato dos pés, revelou-me a conta-gotas, a face da realidade, que se expusera ao longo da experiencia existencial. Passaram-se as luas, o sol, as madrugadas em sequência irrecorrível, ficaram lições e reveses dolorosos à contramão dos sonhos e das verdades há tanto anuídas e cultuadas. Formatara-se, a lento compasso, nova visão de mundo, agora alinhada ao universo dos mortais. Contudo, coração e mente maturaram em assincronia, caracterizando duas instâncias assimétricas e, tantas vezes, antípodas.

Os arroubos do coração fluíam caudalosos, a instarem diligências a seus apelos cardinais, situando as demandas intrínsecas do mundo afetivo na dimensão dos requisitos primários do corpo e da mente. Vieram desafios às concepções ardilosas e inconscientes, as experiências indesejadas, suas decorrências ácidas e impostergáveis; um mar crescente de desilusões cáusticas e perenes foi-se estabelecendo a lento compasso. Neles, ruínas de sonhos refestelaram monstros indomáveis, orientados a obstinados confrontos irremissíveis. Utopias propulsoras da vida, a priori, nutriram esperanças, iluminaram trilhas, contudo, desencantos sequentes deixaram o legado afligente da lassidão redutora.

Chegou, enfim, o desafio capitular, atender às interpelações de Afrodite, um culto à deusa, então representada por uma jovem encantadora. Meus pensamentos a envolveram, as fantasias decuplicaram suas virtudes feminais; os dias tornaram-se esplêndidos, a natureza mais bela e as noites insones. A vida estava em suas mãos, a alegria no seu rosto, a beleza no seu sorriso. Absoluta perfeição imaginária!

Por um acaso fortuito, olhos nos olhos foi a magna experiência extasiante; impulsionou-me uma rede intrincada de pretensões a orientar-me sonhos e certezas, em perspectiva. A deusa, indiferente, continuou serena e imperturbável permaneceu; eu, em aquecido estado de resignação e confiante espera. O percurso solar repetia-se, iluminando minha confiança, acolhendo-me a insistência, nutrindo duvidosa certeza. Longo foi o culto, grande o sacrifício, magna a decepção; imortais testemunhas: sol, terra e lua velaram-me as cicatrizes.

Decênios morosos desfilaram entre agendas mornas; invernos frios deixaram o estigma do recolhimento inconsolado, do gemido suplicante à dor dilacerante e silenciosa. Sem confidente, vesti-me de solitudes e despi-me das certezas. Nos oráculos do tempo colhi os augúrios, ressentido; aos pés da deusa depositei sonhos e desejos. Levei comigo a ilusão desbotada, o vazio profundo, à margem do qual resisto à insana precipitação.

As noites escuras, o céu sem estrelas e uma lua entre nuvens pardas permaneceram na parede e na retina, cingidas por moldura dourada, protegendo arquivos mentais indeletáveis. Ao furor da saudade recorro a eles e retorno ao culto improfícuo. Oferendas e sacrifícios seguem o caminho esperançoso e inútil da obstinada repetição. Em frequentes episódios finjo-me ao encontro do impossível, a presença encantadora inumada no tempo infortúnio. Entretanto, à luz da consciência esvai-se o prazer efêmero da fantasia, que ressurge qual fênix dourado de excêntrica identidade.

Atraem-me as multidões, aluviões de cascalho sobre o meu troféu, indiferentes; na profusão dos rostos, à lembrança, procuro o seu brilho, sua presença, agora, talvez irreconhecível ao implacável efeito entrópico que, aos caprichos de Cronos, a natureza impõe. Absorto, sinto a fragrância suave que lhe unge o corpo e que ativa os remotos arquivos de certezas; resoluto, imerjo confiante na aluvião disforme, supondo lograr a mágica emersão do seu rosto sob o véu lunar. Diligências tais, inócuas e traumáticas, irrompem-se de cicatrizes e designam-me submissa condição de refém irresgatável.

Na amplidão do meu firmamento outras estrelas brilharam, deslumbrantes; iluminaram a vastidão caótica do espaço deixando cair esplêndidos raios sobre mim. Seus eflúvios embriagaram-me, magias insinuantes envolveram-me, fatais, então, outra lua fulgente ofuscou-me o sol, no seu crepúsculo. Uma sensação de conquista, infusão balsâmica que me invadiu a alma, vitalizou-me o espírito, oxigenou-me a vida. Entre estrelas luzentes e sonhos cálidos anunciei meu restauro, enquanto venturoso segui exultante.

As estrelas deslizavam em sutis movimentos, que disfarçavam ao fulgor do brilho micante; desciam a outros olhos e se precipitavam, em retumbante impacto sobre promessas e sonhos; obedeciam à gravidade e, à sua força, desintegravam-se na atmosfera, dissipando-se em pó e silêncio, enigmáticos. Seguiam-se turbidez do tempo e desencantos, enquanto o coração, reflexivo, alargava-se acolhendo outras promessas.

Muitas luas e estrelas permaneceram com seus brilhos ignescentes, contudo, ao ritual cósmico, minguaram suas candeias e desapareceram, deixando um rastro de lembranças que, à luz da saudade, ainda jazem, vulcânicas no inconsciente. Outros astros, mais longínquos, tremulam em horizontes nevoentos, em dissipações áureas, contudo, movem-se discretos, sem o glamour radiante dos pretenciosos, nem os acenos transbordantes dos aflitos. Compõem, nas suas constelações, um quadro de sublime beleza, exposto às exclamações poéticas, aos lamentos desejosos dos sonhadores, às interjeições de êxtase dos contemplativos.

Na passarela do tempo muitas primaveras desfilaram, insinuaram promessas lisonjeiras, aspergiram essências inebriantes, encantaram com suas belezas e adereços multicores. Todas, igualmente, repousam nos braços do passado, onde aguardam novas edições segundo os desígnios da natureza. As lembranças são, agora, um reviver o júbilo de momentos gloriosos, dos quais tornei-me ardoroso encomiasta.

Um espírito elevado despontou-me, espontâneo; à sua luz um xadrez de verdades assentado na harmonia dos discordantes; nas diferenças o complemento essencial em movimento de convergência e justaposição, pareciam-me flagrantes, reconstituindo relações de contiguidade e totalidade. A cada parte um universo, um contexto e suas verdades, configurando uma diversidade contendora, integrando uma unidade sintônica, condição inspiradora à completude ilusória.

Então, à margem de um regato pedregoso, à sombra de uma árvore frondosa, fruindo uma brisa aprazível, distingo, na serapilheira extensa, à alquimia dos deuses, a face venusta, o corpo sonhado, que jaz silencioso, ao meu lado. Ela, a eterna sombra graciosa, a sorrir e bendizer os longos conflitos, os duelos cérebro x coração, dilemas lacerantes que me esgotam a paz, esmaecem sonhos, dilatam caminhos. Vejo, rumo ao largo horizonte, um alongar insistente da estrada por entre montes e vales, a esconder-se distante, no horizonte.

O sol, candente entre montanhas, acena com a noite, em cujo seio constelações airosas bordam o firmamento insondável, iluminam planetas e abastecem de vida e esperança os corações vazios, os sonhos imolados à paixão indômita. Às margens da estrada vibram as flores colorindo a terra, perfumando os vales, exaltando a vida. Nos bosques verdejantes gorjeiam, reverentes, as aves, saudando com melodias poéticas a passagem inexorável do tempo.

A fada, inexistente, criada à fantasia, segundo os auspícios de Eros, senta-se ao trono, assiste ao suceder das horas e recrudesce a ilusão altiva; flutua silente sobre as florestas esvaindo-se entre nuvens, anunciando água e novos desejos. Cai, fatalmente, sobre pântanos e prados, e retorna invisível ao espaço. Seu eterno movimento, minha permanente exultação.

A vida escoa, fluxo contínuo, no corpo frágil dos arroios velozes, alongados na superfície fragosa das escarpas, face bordada do talude montanhoso, visto a distância. A vida se expande na exuberância da relva orvalhada, no vigor da floração extemporânea, no vácuo afetivo do coração plangente.

A vida: utopia e desilusão, acena com faces alternantes, ao longo da estrada, entre temores e decisões. Sucedem-lhe história, saudade e poesias à pena desenvolta dos poetas, à lembrança saudosa dos encomiastas. Enfim, passamos, a vida continua com todo o seu esplendor. Ela passa, deixando o pó do que fomos, e, enquanto pó, marcamos as pegadas de outras gerações que seguem o irrenunciável trajeto.

Sem o consolo das luzes acomodei-me à contingência das sombras, envolvi-me com o manto das noites; com pirilampos administro claridade e domino a escuridão. Como eles, tornei-me notívago episódico, contudo, transito entre mortais, na iminência do irretratável crepúsculo. As ilusões foram-se no fugaz brilho das estrelas, restaram-me os pés e o chão. Ao infinito repouso, livre das utopias, aguarda-me a terra.

ALBINO VELOSO
Enviado por ALBINO VELOSO em 09/10/2024
Código do texto: T8169493
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