A MUSA ENTRISTECIDA (ou a morte anunciada da Poesia)

A MUSA ENTRISTECIDA

Naquele tempo tu me sorrias e era sublime o sentir as suaves ondulações de teu corpo. Cantava contigo na voz dos passarinhos nos seus púlpitos alados, e os arrebóis tinham suas vestes feitos de sonhos azuis.

Tinhas muitas e divinas faces e as escondias sob o teu diáfano manto e, por mais perto que te sentisse não te conseguia decifrar. Eras música, sonho, eras a brisa que ondulava sobre o verde dos campos carregada de mil aromas das multicoloridas flores que te cingiam a fronte.

Sim era um tempo bom, o tempo quando ainda as açucenas tinham um sentido, quando tu, minha doce musa ainda me cantavas canções de fazer sonhar, doces como o mel silvestre, aromas de madressilvas e do rosmaninho que enfeitavam as bordas dos caminhos e o chão por onde andavas distraída.

Menina, travessa, linda, zagala, corrias por montes e veigas, trepavas alcantis, depois já cansada colhias um mal-me-quer e, beijada pelos zéfiros adormecias sobre a relva.

Mas, o tempo também tem suas muitas caras. A gente torna-se irremediavelmente adulto, e estranhamente estranho. E, a tua fronte angelical, já às vezes se carrega de sombras e, de repente sinto teu peito arfar e tristemente suspiras; arrojas-te aos astros com olhos chamejantes e baixas à terra debulhada em lágrimas. Choras a sorte das nações cujos habitantes se transformaram em feras e, na última escala da espécie animal.

E este sentir é como um turpor lúcido, um sonho ferinamente lúcido. Desço às profundezas de mim e quase sufoco nas águas deste oceano revolto que me cerca. Mas, logo tu vens, diáfana, sutil, mas já fugidia como a água entre os dedos, e tua face se transmuda e me falas de cataclismos e choras pela insensatez dos homens que parece terem perdido o rumo, mergulhados no obscurantismo, na escuridão da noite que se fará, pois és como corpo estranho às suas vidas. Oh, doce Poesia e, tu és a face de Deus quando para nós sorri?...

Ah como era bela a vida sem esta pressa doentia de viver, sem estas gaiolas metálicas, poluidoras, onde os homens procuram se refugiar, e esgrimem seus recalques; o estridular de sons esdrúxulos a que despudoradamente chamam de música, quando me bastava o som de uma fonte onde matar a sede que não era uma sede de alma, mas uma sede que se saciava numa fonte à sombra de um salgueiro nas tardes quentes, onde as aves se vinham aquietar e não nos esprei-tavam com olhos de espanto.

Para lá daqueles montes que gostavam de beijar as nuvens, haveria alguma coisa de real, merecedor de alguma atenção que me valesse a pena minha inquietação?

Hoje, dói-me o ter gozado daquele mundo, e minha tristeza fica mais triste, pois o mundo real me faz sentir um ser errante, dentro dum quadrante de sonhos sem sonho,pois, a doce musa já ao longe se apresta talvez para seu derradeiro adeus.

Eduardo de Almeida Farias

13-01.2007

Eduardo de Almeida Farias
Enviado por Eduardo de Almeida Farias em 14/01/2008
Reeditado em 04/05/2008
Código do texto: T816847