RECOMEÇO

Perder-se para se encontrar, perder-se no trânsito e encontrar-se num engarrafamento. Deixar se envolver na música que vem do carro ao lado e distrair-se com um avião que voa distante, lento e pequeno lá no alto até perdê-lo de vista.

Perder-se na espera e encontrar-se em nova direção, em pensamentos esparsos, nas vozes distantes, nas caras estranhas. Guiar-se no ritmo lento do tráfego e perder a pressa, simplesmente deixar-se ir nas imagens, sem defesas nem surpresas.

Perder-se na rotina e achar-se trêmula nas notícias do dia. Notícias que chocam, que calam, que abalam. Notícias onde a maldade atua e a coerência magoa.

Perder-se no fim de uma história polêmica e encontrar-se na própria história, nos próprios segredos que ninguém há de saber.

Perder-se nos risos dispersos e encontrar-se no eco da própria voz, no próprio íntimo onde ainda há dor. Dor que um dia há de desaparecer num disfarce discreto ou num sorriso forçado. Ou quem sabe numa lágrima indiscreta, insistente, traidora.

Perder-se nos fios da chuva fina que molha as flores na varanda e encontrar-se nas gotas d'água que pontilham e deslizam vagarosas pela vidraça fria. No ruído das folhas movendo ao sopro do vento, no barulho dos carros que passam na rodovia próxima. Nesse barulho constante, hora tão perto, hora tão distante.

Perder-se no silêncio profundo da casa quieta, adormecida, entanguida e encontrar-se num copo de bebida forte, num poema de Cora Coralina, numa crônica de Fernando Sabino, nas raízes da mãe pátria, nesse idioma vasto, rico e bonito.

Fechar os olhos lacrimejados e perder-se nas imagens opacas que flutuam perdidas na retina. Imagens insistentes, de agora e de outrora. Abrir os olhos, secar o rosto, forjar um sorriso, emergir e encontrar-se na dura realidade de um começar de novo.