Engano
ATO I
O céu púrpuro tocou-me
A própria arte é a natureza
As nuvens de algodão-doce
Na minha boca adocicam
Meus trovões na revoada
Dianteiros ao meu caos
Um minuto de silêncio
Para a balbúrdia dos ventos
Cantarolando o bardo se ouve
Batendo as asas joviais
Voe como pena e sem pena
Seja livre!
Anoitece as várzeas do meu
Vale e lá, os pingos brancos
Plantam o lindo céu
Prossegue: o náufrago das gotas
Chorar a terra molhada
Apenas mais uma pintura boêmia
ATO II
Sou a farsa mais tenebrosa que já conheci. Julguei-me contemplador atento das sutilezas mágicas do mundo. Foquei minha atenção na desatenção efêmera dos dias, então por acidente descobri a mais vil ilusão que cometi. Tudo isso por um simples objeto, um objeto de pelo menos dez anos de existência repousado no mesmo local. Ele havia sepultado sua utilidade naquele instante, naquele dia, naquele maldito local! Meu Deus, e agora?! O meu lema sempre foi a contemplação, o meu coração escreveu contemplationis no meu destino. O apego que depositei na cultura oriental foi a razão do meu existir.
Olhar os lírios do campo como deuses materiais, ver lágrimas do céu lindo beijando o meu rosto calorento e, como atitude seguinte, amar o presente.
Mentira! O objeto sumiu, já não sei há quanto tempo: um mês, um ano? Sinto-me um toco de gente. Quantas sutilezas deixei de perceber? Será que agora me conheci mais ou me conheci menos? Que desgraça! Um simples objeto. Encontro-me morto, tudo soa vazio. Apatia é o que está na minha vida. É patético, é simplesmente vergonhoso o meu desgosto. Enquanto sofrem por amores e posses, eu sofro meticulosamente pelas ínfimas inutilidades.
Escrevi como se a ação de escrever fosse um disparo suicida. Quantas vezes me matei?
Um simples objeto… perdido no espaço. Agora sinto-me a própria transmutação de mim para ele. Sou o objeto, adquiri a sua essência. Atraído pela indiferença dos seres, tornei-me memória.
ATO III
Sinto agora uma profunda catarse no silêncio. Ela farfalha entre as nuvens cinzas da ansiedade e a maestria do eu profundo. Estive preso à forma, preso à inibição da hierarquia do mundo. Os faladores berraram em meus ouvidos com a opressão do nomear: certo e errado; belo e feio; o monumental e o ínfimo. Pouco importam as categorias.
Quando parei para escutar a verdade do coração, descobri a frigidez da arte. A minha vida foi poetizar ilusões num teatro de sensações precipitadas. Chorei com o tato quando toquei coisas que não existem; ainda tive paixões enclausuradas pela roupagem vazia que as cobriam. Tudo, portanto, foi uma contínua experimentação de cascas quebradiças de um mundo falso.
A minha arte morreu hoje. Sempre fui de temperamento mórbido. Estive fascinado pela régua disciplinadora da morte. Com o meu cadáver perambulando a dança irregular da existência, julguei-me apreciador da estética da composição fúnebre. Como julgar é um verbo carregado de erro, saciei-me no erro. Errei com vergonha de tudo o que fui; sinto náusea neste instante por tanto tempo ter sentido a frescura do ar gélido e, numa ignorância descabida, ter poetizado sonhos vazios e sem propósitos como o vento.
Acordei sem desespero, mesmo tendo uma leve sensação de estar envolto em ilusão. Pus-me a olhar o brilho do horizonte largo; as nuvens carregam uma inocência absurda, principalmente quando aviões passam por elas. Consigo até perceber o brilho pueril de meus olhos contemplando-as.
Preciso andar em terra firme agora, já não sei mais como poderei continuar. É como se eu rejuvenescesse em estados poéticos primários: um bebê participando da vida pela primeira vez. Viro até a garganta um gole de água gelada para ao menos hidratar algo nessa minha vida. Refresco-me meditando com um simples ato, assim como fiz a vida toda, a diferença, portanto, é que agora existe a sutileza de regar-me com a verdade. O dia está claro, a água ficando morna, o mundo está girando. Apenas observo as sequências de coisas alterando seus estados: a claridade do céu ofusca a melancolia violenta que obscureci nesses últimos anos. A água fica morna e isso me lembra a secura filosófica que sempre achei que possuía. O mundo gira, apenas isso, gira, com ou sem motivo, tal como tudo o que me cerca.