ESTRANHECIDO
ESTRANHECIDO
Subverto a ordem do nascer. Nasço diariamente, porque morro. Viver é recolher os lutos diários. Coloco-me no colo, mas não me balanço. O mundo se encarrega disso, de modo a me fazer chorar. Clamo. Parem, por favor, quero descer. Nessa parada desejo encontrar algum saber oculto que me faça recobrar o que é ser coerente. O que sinto e como ajo se duelam num quotidiano imerso por pragmatismo. Sei que sou romântico, sei que a poesia me convoca, e me dói tanto ser absorvido pela ilógica performance de ser um outro ditado por um alguém cuja face sequer reconheço.
A vida mostrada não é a sonhada. Sonhar é idealizar o impossível? Como materializar o campo das ideias? A alma dá recado. O corpo padece porque o coração carece de afagado. Correr demais dá vertigem. Quando criança, me deleitava a girar até perder o equilíbrio e depois deitar vendo o mundo girar noutra velocidade. Hoje, o descompasso ocorre sem que seja necessário rodopiar. Sou um pião? Se sim, quem põe a corda e a solta? Faço-me um chamado à lucidez. Recorro às palavras e ao silêncio para que o campo das ideias floresça e traga as borboletas que soterrei na infância. Isso não é retroceder, mas avançar. Avançar sobre o fruto da maturidade que nos alimenta da esperança de que o mundo seja bem mais do que a futilidade imposta. E, se tudo por ora me parece banal, devo fazer mea culpa porque me permiti ser contagiado. Há muitos caminhos e procurei atalhos. Assim, alonguei a distância entre quem sou e aquele que gostaria de ser. Fui na contramão dos meus afetos.
Estudo a gramática do sofrimento psíquico, disseco o discurso enviesado que resguarda verdades inconfessáveis. Para quem? Talvez essas mentiras que gostamos de contar para nós mesmos seja a terceira perna à qual Clarice Lispector faz menção. Ela nos sustenta entre dilemas. O fato é que a sentença está posta e necessita de análise. Quanto tempo vivemos sem saber viver? O tempo traz sabedoria? O momento do estranhamento, de se perceber no autodesconhecimento, somos chamados pela consciência a reagir – quanto tempo foi preciso caminhar para percebermos que erramos a rota?
Nossa aptidão para escolher o que nos destrói nos levou a depressões. Uma das formas de uma depressão se manifestar é quando se vai na contramão de si. Ao se chocar como imagens no espelho incompatíveis, vê-se uma imagem fragmentada, repleta de esparadrapos e maquiagens na inútil tentativa de esconder as cicatrizes. Nos matamos a cada sonho renunciado. Quando um NÃO ocupa o espaço de um SIM e vice-versa. Não é apenas um jogo entre os advérbios. É a contradição do ser que, desejando ir por um caminho, vai para o oposto, como se voltasse uma faca contra o ventre.
Quando foi que nos perdemos? Quando vamos nos encontrar? Na morte? Mas, por quê, se há tanto que se viver. O universo de possibilidades à nossa frente nos angustia. Não deve nos paralisar, contudo. Sou um ser angustiado. Quero aprender a ver. Preciso de longos períodos de reflexão para enxergar o evidente. Sinto o espinho inflamando, inflamando, inflamando. Estou disposto a mergulhar o mais fundo possível se for para encontrar o que anseio. Não quero respostas prontas de ninguém. Possivelmente, terei ainda mais perguntas.
É preciso olhar com carinho, mas sem pena, sem coitadismo. Olhar com a paciência de quem responde às inquietações pueris, como quando uma criança quer se apropriar do mundo para prosseguir assimilando a (des)ordem do mundo a partir dos sentidos – as belezas, os cheiros, sabores – sensações múltiplas de quem se permite viver sem maiores julgamentos. Queremos a liberdade e esta custa muito caro. Viver é pagar o resgate de si mesmo.
Quantos eus são meus? O que restou de mim é meu? Não, do mundo, porque sou mundano, assumo, por isso não idolatro nenhum humano. Sou estrangeiro em terra inabitada, sou o que de mim ainda não sei dizer. Um olhar para fora e um olhar para dentro. Um reconhecer-se continental que requer ferir o ego para admitir que também sangra. Estranhecido, assombrado, vivo.
Leo Barbosa é professor, escritor, poeta e revisor de textos.
(Texto publicado no jornal A União em 20/9/24)