Legado
O pequeno Novo acorda. E como boa criança que é, desce ainda de pijamas aquelas escadas de madeira, se senta na mesa e pergunta a Velho:
- "Pai, o que já passou é passado e não importa mais? E o que vamos comer hoje?" Então Velho, que estava pegando lenha para o fogão, respondeu:
- "O que já passou nem sempre o é, meu Filho. Ainda pode ser relevante. Ou melhor, sempre o é, ainda que não percebamos. Comeremos o de sempre". A conversa era ordinária, admito; nada de mais para ver nem ouvir. O ambiente também, início de manhã; o sol ainda dava seus primeiros passos, mas já penetrava na poeira que dançava nos móveis antigos daquela casa. Contudo, era daquelas conversas que só acontecia entre pai e filho nas manhãs de domingo. Coisa singela e poderosa. Era coisa de família.
- "Então, por que esquecemos dele? Por que as armas e os barões assinalados não são louvados nem agraciados? Por que que aqueles passaram ainda além da Taprobana são esquecidos e abandonados? Por que...?" O jovem perguntava ansioso, quase que com medo da resposta que já havia imaginado em sua mente. Mas Velho não tinha medo. Calmamente preparava a mesa e respondia com tranquilidade e um sorriso no rosto.
- "Não é sobre lembrar de todo o passado, mas sobre vivê-lo. Ainda que os reis que dilataram a Fé e o Império não sejam mais lembrados, ainda que nossa ascendência seja um mistério, ou ainda que nossa descendência esqueça de nossos nomes e existência. Ainda que a escrita de nossas lápides se desgaste com o tempo. As pessoas podem da lei da morte se libertar".
- "Não morrerão mais? Serão imortais como os anjos do Céu ou como no Último Dia?" Perguntou o garoto confuso.
- "Morrerão, é claro. Nada dessa era escapará da morte. Somente após o Dia; ali tudo há de se libertar dela". Respondeu o pai se sentando na mesa com o café, as xícaras e o pão.
- "Se morrem, como que se libertam da lei da Queda? Como que posso me libertar da morte morrendo? Como?" Retrucava Novo enquanto colocava leite em seu café e pão em seu prato.
- "Novo, não é sobre quebrar a lei. É sobre construir algo eterno. Algo que o tempo nem a morte podem deter ou apagar; que viverá depois de você e, ainda que não lembrem de seu nome, ali haverá um toque seu. Mesmo que a terra já não seja Vera Cruz, ela só é o que é porque assim já foi chamada. Sua ascendência não lembrará de você; nem você se lembra da sua descendência, mas aqui você está porque ali eles estiveram. E ali eles estarão, por que aqui você está". Argumentou Velho tomando seu café preto enquanto contemplava os quadros dos que já se passaram.
- "E que se chama isso? Como que ficamos quando, na verdade, passamos?" Perguntou a criança enquanto olhava nos olhos de seu pai, esperando não somente uma opinião, mas a verdade. Pois, para ela, seu pai a era.
- "Legado, meu Filho. Legado..." Respondeu Velho bebendo o último gole de café naquela manhã ordinária.