Poema Inexistente
Deram-me a tarefa de escrever sobre ti. Coloquei-me a postos, no saudoso ritual, e debrucei-me sobre a escrivaninha antes que minhas mãos tremulassem ainda mais. Ah, se soubessem. Se soubessem minha malfadada sina em tentar fazê-lo. Pediram-me que eu abrisse teu interior e expressasse teus mistérios nos mais graciosos versos. Esqueceram de que apenas eu tinha direito de envolver-me em tuas entrelinhas e, assim mesmo, jamais sanar minha própria curiosidade sobre o teu eu.
Passei os dias tentando decifrar-te. Pensei que te conhecia. Mas tu habitas no inabitável, ascendes no imensurável e devoras-me a cada dia. As horas passavam-se como areia úmida numa ampulheta. E quando chegava o momento de eu sentar-me na cadeira, eu desistia. Renunciava a missão antes de pegar a caneta, antes de abrir o diário e de escrever qualquer jura de amor sobre o teu nome. Tudo que eu pusesse rabiscado sobre a folha contemplaria nem um terço do que tu escondes. E como escondes, até de mim.
Foi aí que minhas esperanças secaram. Evaporaram como gotas de água num asfalto quente. Talvez eu estivesse equivocado, tivesse precipitado-me e optado pelo método mais fácil. Eu precisava viver-te novamente, precisava deleitar-me e observar-te com uma outra perspectiva. E foi assim que eu encontrei. Foi naquela letra que achei um pouco de ti. Foi naquela poesia que vislumbrei, na singela melodia que escutei - mais uma vez - um pouco de ti. Não que seja relevante, eu não desejo esse pouco de ti. Quero contemplar-te por inteiro. Quero viver o teu todo, sem receio.
Não escrevi nem uma estrofe.