Embarcação

Depois que a maré sobre os pés deslizou seu apego, o mundo a fez liberdade. Caminhou sobre os signos da terra fértil a gentileza de amar a mocidade. Aliás, a mocidade corporal que já não lhe pertence; as rugas, como invasores nocivos, apoderaram-se de seu rosto alvo. A voz de sinfonia angelical desafinou a harmonia que outrora tivera. Os grunhidos internos ensurdeceram a face, revelava o inferno a quem a via.

Foi rente no compasso lento do navio, rumo ao horizonte. Que viajem inusitada, justo ela, a que nunca pensou na solidão. Fora deixada como um pano fétido. Jamais se viu estropiada por quem jurou eterno amor. A pele de brilho único quase se apagou por um homem. Os olhos castanhos de lume amadeirado, como a terra chuviscada por lágrimas contínuas, tomaram parte da rotina. Algo que nos sonhos de princesa, a utopia do amor jamais pôde contemplar. Como haveria a paixão um dia ser a angústia de sua história? Compreendeu apenas no dia que o homem foi embora. Partiu feito a saudade que enxuga os olhos no vento corrente das madrugadas. Perguntava-se “por que eu?”, “o que fiz para merecer isso?”, enquanto olhava as fotos do álbum de família. Naquelas pictóricas sombras de um eu que não existe mais; já não mais como matéria corpórea, mas como ideia: a antiga mulher morreu.

Hoje navega pela primeira vez a descoberta de si. Um país oposto ao seu; um cabelo diferente; um dogma alternativo. Sentirá o antigo costume de relatar ao antigo amante o desejo de mudar, e ele não vai censurá-la: “para a sua idade não compensa mudar”. Tal frase que afogou a autoestima durante anos. Atravessará a Oceania do autoconhecimento. Um dia de cada vez, como beijará as aventuras do acaso, porque nem mesmo o rio é o mesmo a cada instante.

Reirazinho
Enviado por Reirazinho em 12/07/2024
Código do texto: T8105547
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.