Indiferença solar

Ó Sol, como pudeste me deixar aqui em prostração observando-te tão indiferente à minha existência?

Razão de meus suspiros, por eras vivi na noite dançando sob a luz da Lua, que me banhava com suas graças e eu repousava em seu minguar. Por eras voei batendo forte as asas para chegar nas mãos de Ártemis e ter abrigo em seu quente e pulsante coração.

Nos campos da Terra eu também brincava com os ventos de todas as direções, as vegetações de todos os tipos e toda sorte de animais. Olhava para as estrelas e compartilhava fatos de minha vida com elas. A luz da Lua, tal qual um farol, em todas as ocasiões guiava minha mente, meus pensamentos e minhas ações. Meu farol, minha trombeta incessante que em minha mente tocava alto ou baixo. Mas, mesmo com meu cérebro interpretando diversas outras ondas sonoras, a trombeta sempre se fez presente.

Ah… eram os tempos da minha ignorância sobre a dança de Afrodite e Caríbdis…

Sol, se falei com todas as estrelas, bem sabes que falei contigo. Nunca voei até ti, mas sempre senti imensa alegria em te ver sorrir como se fosse uma cornucópia de onde se vertem luz e calor.

Bem sabes também de minha prisão no labirinto. O inexorável destino me jogou numa escuridão diferente da noite, pois nesta já não havia meu farol. Gritei a plenos pulmões, mas sempre que respirava eu engolia mais e mais os miasmas daquilo que só os produtos de uso único vivenciam.

Ali, naquele labirinto das incertezas e perdas, da frustração e da falta de perspectiva, os ventos ainda ajudavam a empurrar os miasmas para longe de mim. Do lado de fora, os vegetais e animais produziam ruídos para que eu não me esquecesse deles e as estrelas buscavam iluminar toda a escuridão que aos poucos tomava conta do meu coração devido a partida da Virgem.

Mas tu, Sol, ainda tinha tua luz e após eu achar uma saída de meu cativeiro, com a ajuda de todos, decidi reparar minhas asas e voei. Minha consciência dizia para não voar próximo demais de ti, mas não a escutei, afinal quis repousar em suas mãos e ter o acolhimento desejado. Só tu sabes o motivo, ó guardião das dolorosas verdades, mas a concretização de meu desejo nunca existiu no futuro e só agora sei disso.

Ao tentar me aproximar, tu te afastastes e te afastastes cada vez mais e mais até que, enfim, lançaste em meu peito a Lança da Indiferença. Lança esta que atravessou o meu peito e me fincou no chão, comigo de joelhos e de braços abertos em súplica de clemência. Sol, ó astro rei, por que me relegas ao ostracismo artificial? Me ofereceu tanta paz… agora só há dor.

Com intensidade eu choro de saudade. Saudade de toda aquela luz e aquele calor, já que nem isso me concedes mais, já que até isso que eu sempre tive, tu me tiras sem piedade. Minhas lágrimas já secaram há muitas eras e agora choro apenas o meu sangue, bombeado pelos espasmos dos músculos da aflição. Mais e mais fios de sangue saem das janelas de minh’alma, tingindo minha carne de forma permanente para que jamais me esqueça.

Mas Sol, não notaste como tenho te chamado até agora? Sol, apenas. Se um dia quis usar outra língua para dizer teu nome enquanto sorria, numa vã tentativa de imitar aquilo que sempre fizeste e que enchera meu coração de alegria, hoje tu és apenas mais uma estrela no céu.

Meus olhos já não te procuram mais, já prendi meus sentimentos por ti no mais profundo calabouço de meu coração e lá morrerão todos de inanição, pois não os alimentarei mais. Morrerão por mais que tuas palavras venham a escorrer pelas grades e isso se torne uma possibilidade de que tenham um dia a mais de vida. Um dia a mais de vida apenas para que eu sinta mais dor por saber que essas palavras não tinham nenhuma intenção, além de serem despropositadas.

Tu serás apenas uma estrela que conversarei como qualquer outra. Nunca esquecerei toda a alegria e minha abertura contigo. Me despi tentando mostrar minha verdade a ti. Tu viste toda a nudez de minha alma e confiei em ti algumas das verdades mais sigilosas que guardo em meu coração. Isso me causará sempre uma dolorosa vergonha, mas não alimentarei nenhuma mágoa contra ti, mesmo que eu queira apagar esses registros de meu cérebro. Sabes o quão terrível é ter ficado tão vulnerável diante de um objetivo ensurdecedor de tão próximo, para só aí, como se toda a história do mundo nunca tivesse ocorrido, tudo ficasse em silêncio?

Por tu só terei a fraternidade, compaixão e boa vontade que tenho para com o mundo e tudo que nele habita. Hei de me libertar, erguendo-me, sentindo cada centímetro da áspera lança passando pela minha carne e meu coração, andarei por novas estradas e voarei em novos ares. Destino-te apenas alguns amores, pois um total amar se mostrou impossível diante da indiferença solar.

Carapuça
Enviado por Antonio Core em 11/07/2024
Código do texto: T8104821
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