Nódoa

Ah, nódoa cristalina da vida.

Quanto mais te limpo,

mais o tempo se revela

no sulco do crânio

e na profundidade dos olhos

que fitam a incerta certeza.

O que é toda essa gente

senão vultos do tempo,

cadáveres potenciais

exercitando a ignorância

com um sorriso atroz

e palmas intrusivas?

E tu, tu permaneces, nódoa.

Manchando a camisa

das próximas vítimas

e palitando seus dentes

como se houvesse prazer

na plena deglutição.

Uns se agarram ao símbolo,

outros ao vínculo

e alguns poucos à razão.

Mas não importa, tu surges

como um demiurgo sádico

mastigando a persistência.

E o que sou eu, senão capricho?

Uma existência aturdida

nos gritos convalescentes

dos bilhões que não existem.

Logo me juntarei a eles,

tomando parte no coro

e entoando o réquiem

da mais bela vacuidade.

Eis que na inexistência

desabrocha um tecido,

desbotado pela mágoa

e, agora, convencido

de que aquela velha nódoa

não irá mais manchar

a bandeira da memória.

Eduardo Becher
Enviado por Eduardo Becher em 27/06/2024
Reeditado em 27/06/2024
Código do texto: T8094492
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