Nódoa
Ah, nódoa cristalina da vida.
Quanto mais te limpo,
mais o tempo se revela
no sulco do crânio
e na profundidade dos olhos
que fitam a incerta certeza.
O que é toda essa gente
senão vultos do tempo,
cadáveres potenciais
exercitando a ignorância
com um sorriso atroz
e palmas intrusivas?
E tu, tu permaneces, nódoa.
Manchando a camisa
das próximas vítimas
e palitando seus dentes
como se houvesse prazer
na plena deglutição.
Uns se agarram ao símbolo,
outros ao vínculo
e alguns poucos à razão.
Mas não importa, tu surges
como um demiurgo sádico
mastigando a persistência.
E o que sou eu, senão capricho?
Uma existência aturdida
nos gritos convalescentes
dos bilhões que não existem.
Logo me juntarei a eles,
tomando parte no coro
e entoando o réquiem
da mais bela vacuidade.
Eis que na inexistência
desabrocha um tecido,
desbotado pela mágoa
e, agora, convencido
de que aquela velha nódoa
não irá mais manchar
a bandeira da memória.