Não seja você mesmo

Ah, "seja você mesmo"... Que conselho tão vago, um preceito oco, de sabedoria sem afago. Quem é esse "você" que da bruma deve emergir, se já um vazio imenso no fato de existir? "Seja você mesmo", eles sempre a dizer, sem notar o peso do que isso pode trazer. Um fardo esmagador do vazio existencial, onde ser é tão pouco, quase trivial.

Sem um papel, o ator não tem lugar, é um campo de potências a desabrochar, mas vazio, por não ser nem um ser, possui a liberdade de tudo conter. É ao vestir a máscara que o ator ganha contorno e substância. Assim somos nós, os atores das nossas próprias vidas, sem nenhum importância.

Ao sermos tudo, descobrimos que, de fato, não somos nada. Somos um palimpsesto de personagens. Somos um rio incessante, uma metamorfose contínua. Somos um manuscrito onde cada nova palavra apaga a anterior. Somos um fragmento, somos um mosaico de eus.

Pobre daquele que se acredita alguém, somos um conjunto de vários ninguéns.

Então, o que nos resta? Resta-nos saber escolher os personagens. Pois é na escolha, nesse ato de criação consciente, que habita a liberdade. E talvez, quem sabe, ao final da peça, ao cair do pano, descubramos que a essência não estava em ser alguém, mas em sermos todos os personagens que decidimos vivenciar.

Mozart Sávio
Enviado por Mozart Sávio em 26/06/2024
Reeditado em 26/09/2024
Código do texto: T8094088
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