hoje eu vi a morte assim que abri as janelas do meu quarto
Ele varria toda a sujeira do quintal da vizinha; de poeira a folhas caídas, de cocô de cachorro a restos de comida do dia a dia. De barba cultivada além do queixo e olhos fundos ao abismo dentro de si, carregando o grande saco preto, com lixo dentro, de um lado para o outro. Procurando a vassoura que, há poucos minutos, deixou encostada na única parede que eu conseguia ver.
Ele andava reto, com uma postura digna de orgulhar qualquer fisioterapeuta, e arregalando os olhos, ou para enxergar melhor o que deveria fazer ou para se manter acordado, sóbrio, nessa manhã nublada de terça-feira. Não balançava os braços quando andava, e tampouco baixava a cabeça. Encarava os dias assim, com o resquício do que pudesse encontrar, se desfazendo sem afeto daquilo que não mais cabia dentro de si. Pode ser efeito colateral da droga, eu penso enquanto relembro das noites que o via parado, em pé, com um cigarro entre os dedos, na porta de sua casa às quatro da manhã quando eu voltava do fundo da garrafa.
Ele já foi alguém importante. Me contaram isso uma vez, que ele já chegou a trabalhar com políticos e empresários. E em uma conversa que tivemos, disse que fez parte de movimentos sociais, dando sua opinião sobre a atual conjuntura da cidade, do estado e do país. Mas eu não disse-lhe que gostaria que fosse melhor, pois sua voz tremia tanto quanto suas mãos. E seu odor também afastava qualquer vontade de opinião. Talvez ele soubesse disso, mas tento não julgá-lo. Sempre que o vejo está trabalhando em alguma coisa. Carregando lixo para fora das casas, empurrando um carrinho de mão pelas ruas, e se esquivando do brilho do sol.