A menina de olhos frios

Algum tempo depois e nada mudou.

Ainda era a mesma menina de olhos frios e cabelos cacheados, mas sem muito tempo pela frente. Não que sua vida estivesse por um fio, é que havia se dado conta de como a brevidade chega à todas. Num dia há mais!

Outro dia a menos... Nada ademais...

Suas manhãs ainda eram as mesmas: tinha o café morno e amargo - é que açúcar não faz bem e calor demais desgasta o esmalte dos dentes! - era sob este e outros mantras ela ia se sustentando. Não que se privasse, mas se continha.

De tanto se limitar estava privada, em segredo, de si mesma.

E que limites eram estes?

Pausa para um respiro. Junto ao café, um suspiro.

- É que, por vezes, precisamos todos nós, de um segundo.

Novo mergulho, vamos lá!

Tudo era sempre em nome de um bem maior: de ser melhor, de mais saúde, de mais felicidade, de mais sucesso, de se sentir mais viva, de sentir... Na verdade, por traz daqueles óculos de grau e do excesso de maquiagem que lhe cobria as sardas, ela ainda sustentava toda a insegurança que seus 1,65m de altura lhe permitiam suportar, ou quase.

- Ouviu isso?

Mais uma vez ela vazou, mas para dentro. Não demais, só um pouquinho. Não era como uma cascata... nem mesmo chegava a ser uma goteira. Estava mais para uma infiltração, dessas que mofam com o tempo, incomodam e seguem incomodando... E você deixa lá! Até não poder mais, até desmoronar.

Por todo canto havia pedaços...

- Algumas vezes ela fingia.

Não é que realmente precisasse dos tais óculos, da maquiagem e nem do sorriso habitual, forçava-se a ser cordial, solícita, gentil. Aprendera a ser assim, sem muito tempero que é para não amargar. Melhor mesmo era manter o gostinho habitual de ser trivial. Finitude e momentos satisfatórios, era disso que se tratava a vida. Por vezes tinha bolo e mais vinho, mas - até disso - em algum momento…

- Ela se acabou!

Não de súbito, como aqui no texto. Foi devagarzinho...

Primeiro se privava de possuir, mas sem matar por inteiro o desejo. Sentir vontade, ter necessidade era viver também. E foi este o seu respiro, necessitando, para então e – por fim – existir. Insegura que era, nem sempre terminava suas frases. Era assim que se sentia, lá no obscuro, onde nem ela mesma atrevia se tocar, onde cultivava esses sentimentos inacabados, nessa noite ela se tocou...

- E gostou.

Ela se doía, doía muito, quase sempre. Mas não como essa dor que dói na gente, era mais como uma agonia, desses pequenininhas, que vem no escuro da noite e não conseguem nos calar. Ela seguiu assim... Teve aqueles dias e aquelas horas, alguns sorrisos e até um beijo insosso. Não era mesmo muito... Teve também o seu caderno. Lá mantinha registros e memórias que mal passavam de rabiscos…

Palavras são perenes, ela já sabia, mesmo as escritas.

- Então por que chorar?

Ela não sabia ao certo o motivo, o fato era que, por vezes, ela vazava.

Assim mesmo: de forma mecânica e sem graça! Só um punhado de líquido salgado se infiltrando pelas suas glândulas lacrimais, sem nenhuma comoção.

- Ela já não se atrevia a sentir.

Sentir era pesado, penoso, doloroso e demorado. E demorar para quê? Cansada de tanto esperar, ela nem mesmo tentou. Jamais se arriscou. Seu maior pecado foi o de ser pudente. Mas seguia, prosseguia e caminhava... Tudo no piloto automático, alarmes, cronogramas, agenda on-line, vários checklists e sua corridinha matinal, sempre às 5:30 da manhã.

- Quando necessário ela recorria às suas tais anotações, era para não esquecer.

Seu caderno era meio que um diário, tinha duas ou três receitas, mas também aniversários, fotos, lembretes, páginas húmidas - quase molhadas, quase choradas - e algumas verdades, mas nada de segredos.

Já fazia algum tempo que havia desistido deles... Continha em si uma tal mania de autenticidade: uma diferente, temperada com um apuradíssimo senso de humor mudo e questionável. Daqueles notáveis, que pouca gente entende, mas que todos respeitam. Mesmo assim, ela era respeitada.

- E não é mesmo que ela também ria?

Ria muito, o tempo todo, sem parar.

Mas ria para dentro, que é para não desagradar.

Era o mesmo sendo de humor que determinava a forma como ela escolhia suas roupas, em cada peça uma pista do que planejara para si naquele dia. No de hoje havia estampas de flores, mas não das grandes e coloridas: ela não era expansiva. Seguia assim, discreta, sem passar despercebida. Para este dia, escolhera as pétalas pequenas e branca, de beleza sutil, porém, jamais imperceptíveis, tal como margaridas. Teve também o adereço sem brilho no cabelo, de modo a tirar os cachos das frente dos olhos e pronto: já podia começar o dia.