Era um anjo lá no céu,

Espiava os humanos, as maldades,

Via gentilezas e solidariedades,

Havia os sutis, os resolutos,

Os imaturos, os indecisos…

 

Ah, os indecisos!

Estes queriam sempre acertar,

E Ismael, o anjo, tinha particular pena de tais viventes,

E tal era o apreço que lhes dedicava,

Que os chamava pelo singelo apelido de sofrentes.

 

Eram entes queridos para Ismael!

Talvez porque um deles poderia ter sido,

"Será que fui um deles?" pensou distraído,

"Nunca tenho certeza de nada," aborreceu-se.

Sim, Ismael, o anjo, era um deles, um sofrente!

 

Mas acima de tudo, era um anjo,

E aos anjos sempre cabe ajudar,

E Ismael teria que fazer um trabalho perfeito.

 

E lá estava Olavo, na terra,

44 anos, 4 filhos, 1 salário,

Pequeno, modesto, terreno,

Ficara viúvo no parto do caçulinha,

Que nasceu perfeito, mas levou sua rainha.

E ele, rei sem reinado,

Lenhador sem machado,

Passou a marchar em dobrado,

Nenhuma tentação o detinha,

Era reto, imaculado, correto,

Não podia perder tempo com o pecado.

 

Mas como este mora ao lado...

Bem juntinho de sua casa, bem colado,

Lá estava a Ritinha... ah... a Ritinha,

Meu Deus, é linda como um anjo!

Será que é perfeita para o matrimônio?

Pensava e repensava...

Ritinha por ele passava e para trás olhava feliz,

Mas a dúvida o torturava...

"Não, agora não... não tenho tempo a perder,

Tenho que correr... dinheiro não posso gastar,

E ela não tem um tostão,

Não sei se daria certo,

Se isto seria acertado,

Que dúvida, que horror, meu Deus!"

 

Ismael, inconformado, esmurrava as portas do céu,

"Não é possível, ela o adora,

Como pode desdenhar tão linda senhora!"

Mas tudo tem um jeito, tenho um plano,

"Olavo, do céu, vais ter que te decidir,

Vou um tanto facilitar,"

E de imediato se pôs a voar.

 

Convocou seus amigos arcanjos,

Causou tanta comoção,

Que resolveram apressar

A passagem da tia Eulália,

Senhora idosa, doente e rica,

Que tinha como única herdeira

A sobrinha Ritinha, tão linda e pobrinha.

 

Assim feito, enterro consumado,

Ritinha ficou mais lindinha,

Com vestidos de cetim dourado, caros, decotados,

E ela só tinha olhos para Olavo,

Que para ela olhava embasbacado (de soslaio).

 

Ismael sorriu satisfeito,

O seu plano era nota 10!

O amor rugia no ar,

Raios de tensão pipocavam,

Nada podia falhar,

A junção da riqueza com a beleza

Trazia para Ismael a certeza

Que seu plano era fecundo,

Que não haveria mais incerteza no mundo.

 

Qual o quê... faltou combinar com Olavo,

Corroído por uma dúvida atroz,

Pensou num átimo de segundo veloz,

O pior que poderia enunciar:

"E se ela não me aceitar?"

"É melhor eu me adiantar

E dizer que não posso, que não quero,

Não aguentaria tal rejeição,

Tenho que ser sincero,

Já que não tenho certeza,

Opto agora pelo não!"

 

O que aconteceu depois ninguém sabe,

Mas no céu se ouviu um tal estrondo,

E um corpo celeste foi visto em queda,

Arcanjos cochicharam assustados,

Um certo anjo decepcionado

Quebrara uma asa, o coitado,

Num acesso de fúria, ultrajante,

Sendo suas últimas palavras sussurrantes:

"Ia dar certo, meu Deus, era tudo perfeito!"

 

Marco Lirio
Enviado por Marco Lirio em 09/06/2024
Reeditado em 09/06/2024
Código do texto: T8082219
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