POR QUE EU PERCO AMIGOS?

Entre tantos talentos ganhos do acaso, um dos que mais desenvolvi foi a arte de perder amigos. É algo espantoso e admirável, como todo talento exótico exige que seja. Um daqueles dons inatos, comparáveis àquelas insuportáveis crianças, que já nascem tocando uma sonata de Mozart ao piano. Me orgulho? Não. Me importo? Também não. Na verdade, sinto até como se um peso fosse retirado de minhas costas impacientes. O simples fato de não precisar inventar uma desculpa no sábado à noite pra não sair é um alívio. Então, tudo quase certo.

Isso não significa que eu seja um eremita digno da pena dos que se orgulham de suas centenas de amizades verdadeiras. Até tenho meia dúzia de companheiros que se prestam a tolerar minha rabugice. Mas é tudo com certo distanciamento saudável, pra se evitar o que estraga as relações: a convivência.

Eu perco as amizades pelas mais variadas vias, das formas mais criativas e às vezes das maneiras mais humilhantes. Por exemplo, meu amigo de infância: mágoa. Dele é claro. Quando ele resolveu me dar um filho dele pra batizar, eu aceitei, mas simplesmente me esqueci disso ao longo do tempo. Fui me lembrar, quando vi fotos na rede social do batizado. Daí em diante, se já não nos falávamos muito, passamos a não falar nada. A esposa dele me detesta, com razão. E ele, claro, não quer me ver. Super entendo.

Tive uma amiga de colégio e éramos grudados. Ela sabia tudo de mim e eu dela. Foi a primeira pessoa para quem me assumi gay, fora da família, e tínhamos uma grande cumplicidade. Até ela se casar. O marido, um daqueles jovens reacionários classe média com delírios de ser da elite. Mas até aí, suportei, porque também era um pouco mais tolerante. Mas os anos se passaram, e aquele cara foi ficando muito, mas muito chato ao ponto de eu querer dar na cara dele toda vez que aparecia. Então me afastei. Fiquei anos sem falar com eles. Mas recentemente, minha amiga se separou e eu achei que poderíamos nos reaproximar. Ela me ligou, nós saímos, mas ela queria mais um validador de sentimentos de derrota que um amigo. Tchau e bênção, de novo.

Outro amigo que tive, foi no campo das artes e paranoias. Alguém que compartilhava os mesmos gostos que eu, tão atormentado, surtado e imaturo quanto eu, na época. Vivemos uma amizade digna de diário de algum sociopata com complexo de Deus. Ao ponto de nos falarmos todo dia, e ao ponto de eu confundir sentimentos e achar que estava vivendo num romance de Jane Austen. Cafona ao extremo. Mas esse se afastou de mim e eu até entendo. Muitas neuras e pretensões poéticas que juntas, viram uma bomba de auto piedade. Não faço ideia de como está hoje. Pra falar a verdade, não consigo me importar mais que isso.

Já perdi amigos da faculdade, que foram pra longe, já perdi amigos do trabalho que sempre me detestaram mas eram obrigados a conviver comigo. Já perdia amigos pelo simples fato de eu não tolerar gente reacionária com notas de fascismo, já perdi amigos depois de transar, e já perdi amigos porque simplesmente vestiram o paletó de madeira. Esses últimos, espero que estejam num lugar decente.

Estou muito em paz com todas essas perdas, pelos anos de terapia. O único amigo de quem realmente sinto falta e tristeza pela ausência é do cachorro do meu namorado: Bob. Sempre na porta do quarto esperando eu acordar, mordendo minhas pernas querendo brincar e sempre esperando que eu desse um biscoito pra ele. Já que meu namorado não dava.

O Bob morreu recentemente e esse era um amigo em quem confiava e que eu tenho certeza que me entendia. Gosto de pensar que ele realmente virou uma estrelinha no céu, como foi contado para nossos sobrinhos que ainda são muito pequenos.

De qualquer forma, ainda tenho o meu melhor amigo, meu namorado, com quem estou há 10 anos. Ninguém nunca me suportou tão bem. Ele vai pro céu, com certeza. De resto, só posso entender que todo mundo passa pela nossa vida, todo mundo se vai, e o que permanece é a certeza de que conviver é uma arte. Mas pra isso, não tenho tanto talento.

EDUARDO PAIXÃO
Enviado por EDUARDO PAIXÃO em 01/06/2024
Código do texto: T8076492
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.