Ode ao Ridículo

Só o homem tem este incrível dom de se achar ridículo

Acaso o mar é ridículo quando lambuza as pedras com suas ondas?

Acaso as estrelas são ridículas ao tremularem histéricas no céu?

Não, ridículo é o homem por se achar ridículo,

E sofrer de uma dor que não existe na natureza...

 

Os animais não sabem o que é serem ridículos

E olha que eles muitas vezes são simiescos e exagerados

As focas não se acham ridículas ao rebolarem grotescamente...

Nós sim, sofremos dores excruciantes apunhalados pela vergonha

 

Por que sofremos assim de algo que não habita este planeta?

Por que brincamos de Deuses sentindo o bafo dos holofotes na carcaça?

Não há dor mais medonha do que a peste da vergonha...

 

E tente pegá-la com os dedos, meu amigo,

Ela é etérea, ela não existe, ela é fumaça

No entanto pode ser a peste deste mundo

Responsável por tanta desgraça...

 

A vergonha e seu noivo, o ridículo, são a bênção e o terror desta vida,

É que nem pressão arterial,

Se pouco ou se muito fazem mal...

 

Ai, se eu pudesse ter menos vergonha nesta vida,

Se eu pudesse dar um arre para todos os sentimentos ridículos,

Sem dúvida eu seria mais humano, ainda que grotesco

Como seria bom poder ser um pouco simiesco

Sem sentir o vermelho subir-me à cara

Poder dançar um ode à fanfarra

Sem precisar de pedir um abraço ao meu amigo Baco

 

É verdade, é ele que me ajuda

Contando-me o córtex qual lobotomia

Permite-me a farra e a alegria

De dançar meu samba sem me importar

 

Santa cachaça generosa

Que tantas vidas ajuda e destroça

Rezo este terço por respeito a ti

Pela liberdade que me dás de mim

 

O álcool, este inimigo do ridículo

Traz no próprio ventre um gatilho embutido

Que dispara forte destruindo a alegria

De quem comemorava a liberdade de si mesmo

 

Ah! O ser humano, este eterno insatisfeito,

A passear fáunico por este planeta feito em rocha

Ele puro vento e a vida soprando forte

Empurrando os sentimentos para o lado da encosta

 

Já comi caramujos e engasguei em caranguejos,

Não me traga a sorte ter que enfrentar percevejos

Eu quero apenas poder enfrentar a mim mesmo

E poder solapar todos os falsos desejos

 

Quem consigo fere e não confere o mal que se fez

Traz na palma da mente a tertúlia de seu viver

Não percebe que a vida passa que nem ventania,

E que a maior graça é termos uma companhia

 

Passageiro somos deste destino tolo

Que só não é tolo porque tolice não existe

Só há tolices dentro de nossa tola cabeça

Por que para o mar não é tolice insistir com a maré,

Para as estrelas não é tolice brilhar

Somente na nossa estreita mente

Pode existir algo tão ridículo quanto não gostarmos de nós mesmos

Quanto não sermos nós mesmos, nós que morremos,

Nós que morremos e temos consciência disso...

Nós que a cada segundo deste mundo caminhamos para a fumaça

E a vida dos tolos é olhar para a carcaça

Estrebuchando de medo de viver para o que foi feito

De se ver fazendo o que dentro de si é para ser feito

Vendo defeito no que é feito de si

Arreganhando o beiço sentindo-se troncho feito um saci

 

Ode ao ridículo, este sal que é um bálsamo no mundo

Se pudermos fazer conosco o que só o animal homem pode fazer...

Rir de si mesmo até não mais poder...

Nada mais ridículo que um animal que se acha ridículo

E isto tem um lado ridiculamente engraçado

E a única saída deste pobre animal

É usar o riso como forma de sal

 

Se não for hipertenso, a saída é fantástica

Caso assim o for, deparará com a suástica

E a eterna guilhotina da vergonha insolente

Que paralisa o riso e te torna sem dente

 

Vá em frente e faça,

Transforme sua vida em um hino ao risco

Risque o fósforo do destino

A alternativa é viver como um suíno

Lambendo a lama apalermada

 

Ode a tudo que é efêmero

A toda vergonha desenxabida

À inquietude aguerrida

Que faz da vida um bem extremo

 

E que na paz dos anos vindouros do já ter vivido

Você olhe para si com um vibrar do além

Com grande ternura por ter vivido

Por ter tido coragem de ter sofrido

As marcas e escolhas encravadas em ti

 

E quando aqueceres suas mãos crispadas em alguma lareira

Que dentro de ti flamem as memórias alvissareiras

De todos os caminhos errados que trilhastes

Que te lembrem risonhos que um dia fostes

E tivestes a coragem de tentar ter sido

 

Alguém somente pode ser alguém

Na medida em que ousar esse passo híbrido

Arriscar o ridículo de tentar ter sido

É rir de si mesmo com sabedoria

Caso não consiga aquilo que queria

O importante nesta vida é o querer

Poder ter... em parte é obra do destino,

Mas o querer é nosso e este ninguém tira

E é este querer que o homem animal

Atira de si próprio num podre lamaçal

Acovardado pelo grito do ridículo

De vergonha medonha, a querer dominá-lo

 

1990

Marco Lirio
Enviado por Marco Lirio em 31/05/2024
Reeditado em 07/06/2024
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