Sentido e já negado

Passeio pelos campos, pelas florestas e pelos jardins. Minh’alma, ávida pela vida, escancara as janelas para ouvir os dizeres silenciosos do reino vizinho ao meu. Atiro-me em seus sentidos e significados que são muitos, mesmo que nunca falados. Não pretendo ouvir, pois só posso sentir e sinto o que meus dois átrios e dois ventrículos são capazes de traduzir e às vezes, quando meu núcleo já não suporta tanta emoção, devo recorrer apenas ao órgão valencial que a tudo recebe e a tudo sente.

Ah! Sentir, sentir para ouvir o delicado buquê. De que é feito? Sua pupila é composta por Junquilhos, sua íris possui um belo arranjo de Folhas de Parreira, a esclera fica magnífica abarrotada pelas Dálias Cor de Rosa e, sem dúvida alguma, os exemplares de Monsenhor Branco formam uma pálpebra formidável… ah… nem ao menos notei quando concluí está obra de arte que outrora era inimaginável. Dos jardins dos quais sou seixo, admiro muitos astros, mas para minha mais nova aquisição fiz este arranjo.

Como queria eu que holofotes apoteóticos fizessem sumir o quadro infernal que sou fadado a observar, de fundo escuro e feito com a pior técnica de pontilhismo possível, ainda que use belas tintas compostas por pigmentos sem massa. Mas é tristemente apocalíptico que, por mais que me cegue de tanta luz, os olhos da grande mosca cupídica ainda me sondarão pela eternidade com seu olhar quase sólido.

Sobre as pétalas brancas já deixo tantos rastros que os pássaros já voam para longe por temerem suas entradas engaioladas em uma mina cujo produto serve para criar os instrumentos pelos quais me ferem o povo celeste. Povo que não teria tal poder se eu não fosse completamente regido pela maldição contida na benção limitada por duas fitas.

No meu céu tu surges então. Este ramalhete é para ti. Sei que nem ao menos sabes de meu martírio, mas saibas que cada passo que dei me levou às danças de morte e vida que me permitiram sofrer igualmente a um efemeróptero.

Possuis o dom da fala e, com este, consegues, sem necessitar de algo para registrares, fazer a minha dor ser avivada e inflamada pelo simples ato de oxigenar o fruto de toda a beleza, maldade, sofrimento e arte do ser humano e que eu, como membro deste grupo, tenho um exemplar.

Letras são inúteis, palavras mais ainda, mas tu tornaste esta linguagem vulgar tão certeira que perfurou muito mais do que minh’alma: abriu as suturas de um ferimento de morte. Que protocolos ecoem os sinais, mas que eu não pereça deste mal nunca mais.

Como és criatura formosa Momo, teu modo de existir me cativou profundamente nas tramas fantasiosas dos mortos tão exaustos. Como podes conheceres tanto, saberes tanto, criares tanto? Criarás tu tantos mundos a sós… não é possível que num deles haja um “nós”?

Fui neófito trazido à luz por tuas mãos. Por quê, após tanta boa receptividade, quisestes se afastar? Sumistes e entendo quando há problemas com teu sangue na terra da suíte dos planetas e da dança dos cavaleiros. No entanto, por quê, quando retornaste, foste tão exuberante e depois tão distante? Partiste meu coração em dois, mesmo que de forma completamente alheia às correntezas de uma paixão que estava se concretizando em minhas sinapses.

Não há pelo que lutar ou perecer, já tenho condições de vencer ou tentar. Não fomentarei, como prometi em outra ocasião, nada mais do que uma bela canção…

Queria eu que tuas histórias pavimentassem um caminho, com brita, areia e argila, para que eu pudesse a tua alma beijar sob os cílios de tuas janelas. Lamento ter que por um fim nisso logo no começo, mas como as narrativas são tuas posses, digas para mim: pode na verdade haver mentira plantada para brotar uma nova verdade?

O destino não pertence a mim… mas as portas nunca se fecharão por completo, basta tua vontade. Se abrirás ou não, não importa, tu que escolhes, mas, até lá, deste texto não mudo letra, palavra, parágrafo e muito menos o fim.

Ai de mim, ai de mim! Cairei nestes campos e me intoxicarei com estas flores. Apenas peço aos céus que deem minha liberdade para enfim achar o derradeiro amor e sem dor poder andar pelos vales e me banhar nos riachos da leveza, dançando enquanto as águas me esfolam para assim me tirarem a tristeza.

Carapuça
Enviado por Antonio Core em 29/05/2024
Código do texto: T8074502
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