Sacramento da Pluma
Um dia senti um universo bailar na dança do ar límpido. Olhei uma pluma cinza sobrepujar toda a deformidade das nuvens, assim, lentamente a vi caindo em melancolia. Um belo roubo de cena se fez óbvio, e a minha compaixão por ela, marcou-me eternamente. Sofri por uma pluma, pluma esta saída das profundezas das vísceras angustiantes; dos intestinos ácidos do amor carregado da humanidade. Sentimos pelo estômago, não pelo coração: o que ingerimos forma carcaças de emoções, vomitadas cedo ou tarde. A pluma ciscou os meus dedos em gotas de vinho negro — foi quando percebi a semelhança de nossos rostos tocarem um ao outro. Tudo o que senti nesse dia foi uma confusão de amor e tristeza: chamei-a pelo meu cinza coração violado; de tom morto, monótono, sem graça, sem nada…
Nesse dia não pude afirmar que fui abençoado, mas as sombras das minhas dúvidas concluíram que nada mais poderia ser igual. A pluma e eu tornamo-nos um ente de leveza uniforme, tal como a planície do solo proporciona o horizonte das águas. Ela foi a única coisa que senti confortável em entregar-me por completo. Por toda a minha trajetória, sentia-me deslocado do mundo, ainda que houvesse facilidade de arrumar amigos. Era como se eu fosse um figurante do meu próprio espetáculo, onde a direção fosse controlada por saltos aleatórios, direcionados conforme o meio. Gosto da minha família e dos meus amigos, mas não compreendo as pessoas, todas elas parecem alheias ao universo sem graça da minha vida. O bon-vivant, em particular, o poeta, fala sobre a solidão e a solitude, mas o meu problema é a solidão da solidão! Estive ou estou (perdi-me no tempo) fora da alma. Tenho saudade do que senti nas minhas vivências passadas, onde as tardes olhando o nada eram de bálsamos inenarráveis hoje em dia. O passado se fez sombra de memórias nubladas, já não sei mais distinguir o que era chuva e o que era Sol. A despersonalização fez-se amiga.
Não sou tão novo, porém não tão velho, estou na jovialidade das descobertas — apesar da falta de recurso material e espiritual. É uma pena agora enxergar a terra, as pessoas, os símbolos, as coisas todas como maldições soturnas de um evento inexplicável. Senti, e ainda consigo sentir, a composição da angústia criar-me raiz no corpo. Ela sai do cemitério de pensamentos notívagos, sai dos emblemas das emoções; ou seja, move-se na loucura gástrica do estômago. Por vezes sinto como se fosse capaz de compreender a humanidade em todos os seus estágios. Miséria, desespero e tantas outras adversidades dos homens, desabrocharam em mim a consciência da matéria. Penso por todos os seres — servindo ao cargo da megera paranoia.
A contemplação é de praxe, virou um membro do meu corpo. As pessoas olham a minha fisionomia e a estranham, pois, em suas próprias ordens subjetivas, julgam-me distante delas, como se houvesse uma lei moral coletivista. Nada garante que a minha aproximação convidaria ao meu âmago o pertencimento de todos os seres.
Servi de base para o voo da pluma, e assinei o desespero cavalar da existência com a tinta em sua ponta. A Literatura esteve e está no jugo de todas minhas experiências; apenas preso a ela, deixo a cordilheira dos pensamentos sufocar-me à criatividade destrutiva.