"Não me sacudam que estou cheio de lágrimas."
O senhor impecável na sua camisa branca, despojada de gravata, permanecia solitário, encostado ao acrílico, na plataforma que separa as carruagens do comboio. Era o rosto do desalento, emoldurado numa barba aparada e quase grisalha. O sobretudo de caxemira cinza parecia um manto pesado, carregado de sombras e preocupações.
A minha atenção focou-se nele, em detrimento do livro que tencionava ler. Olhei-o fixamente, na certeza de que, caso os nossos olhares se cruzassem, ele não me veria. Nas entrelinhas da expressão, podia ler-se as palavras de Louis Calaferte: "Não me sacudam que estou cheio de lágrimas."
O comboio estremeceu e parou; as portas automáticas abriram, ele saiu. O comboio, indiferente às histórias pessoais que transporta, continuou a sua jornada. O início da marcha foi gradual, fiquei a vê-lo da janela, e ele foi ficando para trás até desaparecer.
E não pude fazer nada.
Quisera oferecer-lhe palavras de consolo ou, pelo menos, pôr-lhe a mão no ombro num gesto solidário que transmitisse afeto. E assim, no fluir das estações, perdi o encontro com a oportunidade de partilhar um momento de empatia.
O senhor impecável perdeu-se na imensidão enevoada da noite, e eu, confinada ao meu assento, fiquei com a sensação de que, por vezes, a vida coloca-nos diante de cenários que não ousamos contaminar.
O comboio, como o destino, segue o seu rumo, mas a reflexão sobre aquele momento, que não chegou a ser, permanecerá comigo, como um capítulo não lido. Um livro inacabado, cujas páginas em branco ocultam oportunidades perdidas. O Ricardo, tinha de lhe dar um nome, permanecerá nos trilhos do tempo, lembrando-me de que, por vezes, as histórias incompletas também deixam pegadas num campo despojado de neve.