PARA ALÉM DA JANELA

A locomotiva emitia um som familiar pelo caminho de sempre.

"Fiuí, Fiuí" era o som da poesia quando alguma cidadezinha já se mostrava próxima...

O meu destino era algo que me parecia longínquo, embora a plataforma seria a mesma, a das tantas emoções de se chegar.

Em movimento contínuo não era possível observar com precisão as gramíneas que margeavam as cercas dos campos, aliás, algumas demarcações são bem invisíveis quando se negam a mostrar a face nos primórdios das vidas.

A olhar de perto, através do vidro esfumaçado pelo vapor da máquina e da névoa, tudo parecia correr rapidamente, porém, ao distanciar o olhar ao infinito, me era possível desfrutar da paisagem das fazendas, tudo tão verdinho, onde o gado farto, lá bem longe, mais parecia peças imóveis dum presépio natural.

Tão criança ainda, eu grudava os lábios no vidro da janelinha, soprava para embaçá-lo mais ainda e ali escrevia algumas palavras encadeadas, frases que eu acreditava selar o que parecia ser para sempre.

Pequenos versos da ingênua tolice do acreditar.

"Para sempre" era o que tudo parecia ser naquele tempo tão falsamente inerte .

Palavras sempre me encantaram...porque juntas ou sozinhas poderiam construir mundos.

Lembro-me que, vez ou outra, eu fitava o olhar perdido, embora a olhar bem fixamente, só para observar minúsculos detalhes da flora, a imaginar que talvez aquela pequena flor amarelinha, por vezes rodeada de joios do mato, a passar tão rapidamente pela minha janela, tão comum e amiudada no todo dos campos, talvez nunca tivesse sido olhada com tanta atenção nos seus pequenos detalhes.

Pensamento mágico é o das crianças. Algo repleto de sabedoria intuitiva, como a poesia inata que timidamente floresce em campo fértil.

Tão logo de volta a mim , sob o estridente apito do guarda do corredor, eu me inseria na realidade do meu vagão, sob seu ranger que tagarelava com os dormentes do caminho; e assim, eu me sentia acolhida por ter aonde chegar.

Pelo caminho ,de quase meio dia de viagem, havia sinalizações que me indicavam a proximidade do destino a saltar, tal qual aquelas pedrinhas que deixamos nos caminhos das trilhas, para saber voltar.

Eu já conhecia os dormentes exatamente como mais tarde conheceria a palma dos caminhos...

O tempo correu pelos trilhos.

Às vezes, com ternura inexplicável, eu me sento naquela mesma janelinha , a fitar para o além do vidro jateado de histórias, como a acolher aquelas florezinhas amarelas, as que espevitadas corriam para o tempo incógnito, ali diante dos meus olhos.

Hoje, sinto que pareciam me soar algum verso...

Sim.

Aquelas miúdas e frágeis criaturas , tão precocemente, já me recitavam um verso metafórico pelos caminhos, a sussurrar que, como elas, somos todos nós sob olhar do tempo.

Quando ele, a correr em ato contínuo, nos fita com suas cegas lupas zombeteiras para além das suas janelas embaçadas, a

alheio nos olhar pelas passantes cenas sob seus trilhos, sem nunca nos enxergar com acuidade, sem nem sequer se voltar para trás.