O primeiro homem
O primeiro homem
Meu coração tocando foi a primeira coisa que senti. Havia como que um líquido correndo todo o corpo. Quando minha cabeça foi invadida por esse sumo, um cheiro de mato invadiu minhas narinas; era um odor difuso; depois vim a perceber que eram vários aromas misturados; no momento, apreendi como um só. Sei que houve antes muitos movimentos involuntários, mas o primeiro mover na fronteira entre o instintivo e o voluntário foi abrir os olhos. Uma percepção de que acabara de me separar do chão úmido onde estava estendido apareceu-me, deixando-me confuso e surpreso. Os olhos abertos formaram a imagem do mundo. O vento era muitíssimo forte; em seguida, soube que era o mesmo vento que havia entrado no meu nariz e me dado vida; meus ouvidos ouviram o primeiro som - esse vento sibilando e as árvores que balançavam. Ainda na minha cabeça, nos milímetros de segundo antes de abrir os olhos, imaginei que o mundo tinha somente uma cor e tudo era uma coisa só, até meu corpo; após, refleti que aquele sentimento de unidade advinha do recente ser um com-dentro do mundo. A visão mostrou-me um outro ser unidade, o ser diverso. As cores e o brilho da luz extasiaram-me a vista; não acompanhei consciente, mas tão rápido foi o movimento de levantar o corpo, sentar-me para apreciar melhor e tentar entender o que acontecia que, quando dei por mim, estava em uma posição nova. Só aí olhei para o meu corpo; diante de mim, minhas pernas, como dois troncos de árvores, ao meu lado os meus braços e minhas mãos, teriam sido eles que me puseram sentado, sustentando meu tronco. Minhas mãos trabalharam pela primeira vez, apalparam meu corpo, a maior parte dele pude ver, porém a minha cabeça eu só consegui fazer uma ideia de como ela seria, apalpando-a. Pressenti forças em minhas pernas, era como se elas quisessem fazer um movimento diferente e simplesmente as obedeci. De pé, desfrutei o prazer do vento batendo no meu peito e ao olhar meu corpo, assim na posição ereta, encontrei dentro de mim uma apreciação que mais tarde denominei de beleza; mas quando dei a palavra, perdi o sentido total do que ela poderia expressar, não só a consideração de algo belo, porém a sensação de contentamento, a descoberta de que meu corpo poderia realizar as minhas vontades. Ao levantar a cabeça pude divisar o céu com mais clareza, a sua cor fazia uma combinação maravilhosa com a cor predominante da natureza aqui embaixo; branquinhas, algumas nuvens passavam calmas lá em cima e, no meio a esfera que logo se anunciava como iluminadora principal, vislumbrei a sua luz e fitei seu centro, imediatamente sentindo o impacto por sobre os meus olhos, que foram desviados rapidamente. Para cima e para todos os lados tudo era muito bonito. Peguei em uma árvore e comprovei que, ao ordenar alguma coisa, meus membros obedeceriam assim como obedeci a minhas pernas para ficarem de pé. Da árvore me caiu um objeto; ainda não havia observado a planta direito, por isso não tinha visto que ela segurava objetos macios; minhas mãos o levou à minha boca; dentro dela havia dentes, sim dentes, não estava vazia como foi minha impressão e eles morderam a fruta; fruta! esse foi o nome que dei ao objeto da árvore; um gosto suave invadiu minha boca e o pedaço desceu para dentro de mim. Surpreso, descobri uma abertura que iniciava em minha boca e ia até dentro de minha barriga que sugava frutas e com certeza iria transformá-la em mim mesmo, misturando-a com os meus elementos constitutivos. Um som diferente ouvi então, escutei bem, não era o som do vento nem das plantas, era outro som, outros sons, não mais um e tão diferentes!; caminhei, caminhei!, não, não se haviam esgotados os movimentos somente em ficar em pé, haviam outros e agora descobri o caminhar; não ficaria em um lugar só como as árvores, me movimentaria e com um grande susto vi seres que movimentavam-se em minha direção e tão díspares! Parei, a mesma surpresa que eu tinha eles pareciam ter também; eram bonitos, mas tinham constituição diferentes da minha, muito diferentes. Depois, nas minhas reflexões concluí que há formas diferentes de beleza. Aproximaram-se e na surpresa tinham uma coisa a mais, era ressaltada a alegria que possuíam e com seus sons pareciam dar-me o bem-vindo à terra; esse o nome que dei ao lugar, tirado do barro lodoso que estava antes de ser eu. Os meus pensamentos falavam comigo, mas estupefato vi que cada um dos que agora considerava meus amigos, emitiam pelas suas bocas seus sons característicos e parei, pus a mão no meu pomo, que depois chamariam meu mesmo. Fui para perto de um reparei bem como ele emitia seus grunhidos, pus minha mão sobre sua cabeça e ele feliz emitia-os com mais força, mais prazer; pus minha cabeça para o alto como faziam e tentei, tentei imitá-los, o som saiu, ecoou na mata e o silêncio absoluto se fez, somente o meu som respondendo a ele mesmo. Eu também podia me expressar como os animais, mas senti que o som saía diferente, não era grunhido, era sonido. Repeti com outro e mais outro e mais outro. Parei embasbacado, tinha uma voz que podia imitar o som de cada animal, mas mesmo imitando o som de cada um, saía de outra forma. Chamei cada um dos animais, esse o nome que dei para eles, pois estavam animados, se movimentavam; cada um ficou com o nome parecido com o sonido que fazia, eles gostavam do nome e me agradeceram, lambendo, brincando e fazendo mais barulho. Estavam em pares e em cada um dos pares eram semelhantes com uma diferença específica e complementar do sexo. Olhei ao meu redor procurando a minha semelhança e diferença, o outro do meu par, e não vi. Somente eu estava sozinho. Caminhei um pouco mais ao redor, havia rios, outras plantas, animais menores, insetos, répteis pequenos, formigas, cupins e besouros. Caminhei ao longo de dois rios maiores; as águas, pude observá-las melhor, podia-se entrar dentro delas, elas eram fresquinhas, logo sorvi-lhes uns goles, eram refrescantes e revigorantes. Foi olhando para as águas do rio que vi refletido meu rosto, olhava para ele nas águas, apalpando-o; em princípio o achei estranho, mas depois me acostumei com ele e gostei do meu próprio rosto. Mas um pouco distante, fiquei com medo de duas árvores e dos seus frutos, eles me pareciam repulsivos, cheiravam mal, o lugar me causava mal-estar. Fiquei com mais medo de uma delas, pois vi um animal que não havia visto antes, ele era cilíndrico, os olhos reluzentes, a língua saía a todo momento da boca; decidi não me aproximar jamais daquela árvore e de seu fruto, a deixaria com o animal repulsivo que cuidava e se alimentava dele. Em um crepúsculo silencioso comecei a sentir um sono irresistível, não compreendi muito bem a razão daquele entorpecimento, não havia me fatigado naquele dia. Dormi, dormi com nunca antes e acordei sentindo um certo dolorimento do lado, parecia que me faltava alguma coisa. Quando abri os olhos ela estava lá, bela como nenhum outro ser, um pouco diferente de mim, porém com muitas semelhanças. Experimentei pela primeira vez o gosto do beijo e de fazer o que já havia observado em todos os animais. Foi a manhã mais linda que conheci.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 2000.