No deserto da memória - Parte 1
... é a vida depois do desencontro.
Existe um instante na hora onde tudo é cinza. Nele, não há concreto, não há silêncio, qualquer tipo de som ou grandes e belas construções. Existe apenas o exato momento em que tudo para dentro de si mesmo. O mundo passa a ser uma fotografia; os olhos retratam o escudo contra a saudade; o corpo quer seguir em frente, enquanto a alma recua na própria ilusão. Estou nos olhos de tudo: do Amor enclausurado, das paredes mortas, dos teus passos que não chegam, do teu nome pronunciado sempre no vazio. Sempre disseste que não virias. As palavras que marcaram essa chaga deixaram também a cicatriz de uma ilusão que me conforta, sem nunca conseguir me completar. Nunca prometeste que não voltarias, o que me fez acreditar mais na possibilidade de não me encontrar em meio à espera do que, necessariamente, agarrar-me à vida e tudo que, sem esperança ou planos, viria a acontecer. Sempre acreditei na possibilidade, assim como me entreguei ao inverso da ausência. O resultado? Um céu observado todos os dias com os olhos de nunca mais. É a promessa muda que quebra o instante único entre o que está cinza e o que não se enxerga de colorido no Sol. E as grandes construções aparecem. O caminhar em frente se impõe, o corpo obedece e a alma renuncia. Aqui, neste espaço somente meu, que é vazio, tu disseste que não virias. Aqui, neste espaço somente teu, que é minha vida, começo o nascimento de mais uma possibilidade. E alguma coisa me relembrará.
Num primeiro dia que precisava ser escrito, tentei exaustivamente criar-te uma primeira frase e não consegui. Toda vez que paro para escrever, sinto um turbilhão de pensamentos. Vozes e lembranças invadem minha cabeça e o canal que liga minha mão ao meu raciocínio é muito estreito para aquele mundo de palavras, frases e recordações. Tudo passa antes pelo crivo involuntário do coração. Sentimento, coração e escrita: é esse o caminho desprovido de placas, avisos ou direção. Caminho que já não suporto mais porque o vazio ainda está presente. Fiz de tudo para adormecê-lo dentro de mim, como tantas outras vezes, mas dessa vez e mais uma vez, também não foi possível. Aquele vazio cresceu. Tudo dentro de mim parece fora de ordem. Uma vontade inexplicável de entender certas coisas, de resolver, à minha maneira, o que havia ficado para trás, por fuga, medo e amor. Sinto-me chorar copiosamente dentro da solidão. Uma solidão escolhida (e essa é a verdade que nunca vou admitir, a não ser em pensamento ou naquilo que não existe de olhos abertos), mas sempre mantida no conforto e na segurança de uma inércia emocional. Esqueço-me de tudo que me fazia forte. Sinto-me chorar, até perceber que choro por algo que não consigo entender. E entender é o que mais desejo. Foi justamente não entender que me fez abrir mão do tempo, escolher a vida, encontrar a ti, perder-me e agora, já no absoluto desconhecido do que ainda pode restar da alma, reencontrar o tempo que procura pelo que foi da vida onde não fiquei. Pensando nisso tudo, acabo me lembrando de dias e mais dias e mais dias do que vivi até este momento.