EPITÁFIO DE UM SERÃO...
"Vamos morrer, mas somos sensatos,
e à noite, debaixo da cama,
deixamos, simétricos e exatos,
o medo e os sapatos." (Pedro Mexia, "Senhor Fantasma")
Uma luz mortiça, lembrando um candeeiro a petróleo, sobressai numa janela distante, como se fosse um farol. Uma brisa envergonhada trespassa a portada entreaberta e quase me gela. Não a fecho. Borboletas de asa curta fazem a dança das bruxas ao redor do único ponto de luz existente, quase colado ao teto. O som de várias persianas a fechar, como se secretamente houvesse uma hora definida para o fazer. Um cão ladra ao longe. Efeito Pavlov, sinfonia canina. Depois calam-se. Nascem sombras nas fachadas dos prédios, lembrando rabiscos em abstrato na tela de um pintor. Um ponto incandescente surge na varanda em frente. Os espiões não fumam no escuro. Não se ouvem vozes, não há silêncio absoluto. Sons indecifráveis vagueiam, como fantasmas tristes, e perturbam o sigilo da noite. Que está fria. Que está quieta. Que está mais deserta do que eu. Fecho a portada. Não apago a luz. Deixo as borboletas cumprirem as suas funções de bailarinas. E vou dormir.
"Debaixo da cama, deixo simétricos e exatos, o medo, os sonhos e os sapatos."