Eu em você

Hoje pela manhã fui invadida por uma felicidade. Daquelas enormes com poder de dominação. Era honesta, minha. E era útil estar em êxtase. A utilidade de estar feliz fez mais por mim do que a carranca mole que venho ostentando nos últimos tempos. É que o sorriso iluminou o dia obscurecido precocemente pela borrasca. A felicidade era infinita, sem paga, sem motivo, sem beiradas. Num contínuo e eterno. Deitei-me nela como se estivesse fresca, lívida, relaxada. Até brisa senti, e um vento molhado me encrespando os cabelos. Nada me levaria o momento.

Então você chegou e você era meu suco de alegrias cotidianas, o dono da minha leveza. Porque você é um terno em mim que nada de braçadas no meu oceano íntimo. Mas você estava fechado, afundado, náufrago em águas rasas. Sua solidão retirou-me a alacridade, seu presente nublou o meu. E a enormidade feliz, líquida e jateada, endureceu, depois secou. O momento fez jus ao que era. E o terrível da rotina ganhou dois lados. Um que estava triste e outro que também estava. Mas ainda eram duas tristezas que se serviam. Banqueteavam juntas as gotas a pingar do telhado, os ralos entupidos, o dinheiro escasso.

E as tristezas se tornaram aladas. Sobrevoaram os telhados, quiseram consertar rachaduras nos muros, trocar pisos antigos, limpar piscinas sujas, reformar o que estivesse quebrado no mundo.

E as tristezas perderam as asas, rastejaram por entre frestas, entraram em buracos no chão, passearam pelo esgoto da cidade.

E as tristezas se instalaram nos encanamentos do corpo, entupiram as veias, paralisaram os músculos, viraram pedras na bexiga.

E as tristezas saíram em lágrimas. Mas isso era do banal de sempre. Então saíram pelo reto, pelos poros, pelos cabelos.

E ao saírem, as tristezas se reencontraram, na soleira da casa, na gota a teimar por não cair. E as tristezas se abraçaram, se deram as mãos e foram embora. Elas voltarão. E serão de ambos outra vez.

A grande felicidade da manhã é que não chega de repente. Ela não é fácil de vir. Mora em lugares impenetráveis de tão dentro. Se esconde escancarada e não é vista. A felicidade é um lugar sublime, no imaginário. Pois que está na cara e não se vê.

Então nos demos as mãos, olhamo-nos em nossos olhos e nos achamos outra vez. O que toca um, toca o outro. E agora não era nem felicidade, nem tristeza. Apenas nós. Você em mim. Eu em você.