Redemoinho
"Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, eu estava trazido, ali, no extrato, no meio daquele despropósito, desgoverno. Eu, senhor de certeza nenhuma. O que é isso que a desordem da vida pode sempre mais do que a gente?"
É pois sim, bem sei que busquei toda vida viver na paz de mim mesmo. Lutei com força e arrojada proteção do nosso senhor Jesus Cristo. Nas rodas ou emboscadas da rinha, nunca que desgrudei de saber a reza e fazer o sinal protetor da cruz. Andei por muito dessas terras, sempre na alma a intenção de fazer o bem; nunca o contrário disso, eu pensei.No coração, mais que amor de mulher, ocupava espaço generoso a ciência de que faça sol ou chuva, o sertão é sempre sertão e nosso senhor Jesus Cristo, sempre caminha a nosso lado, protegendo, isso sim.
Então, certeza nenhuma eu tenho. Vivo os dias conforme a vida permite. Dos outros não quero nada; sou pobre, não tenho nada além do meu corpo e panos e água e rapadura, que carrego pra proteger do frio, da sede e da fome. Às vezes um pedaço de carne seca consigo com a generosidade de gente que cruza meu caminho (às vezes penso que é Jesus Cristo disfarçado) que vem em socorro. Aí sigo agradecido, vivendo a vida, conforme o permitido, sem querer o que é dos outros.
E pois é isso. Mesmo com a minha vontade toda de paz e descanso, parece, às vezes, que a desordem da vida, como se um desgoverno tomasse direção, me traz de volta para um jeito de viver que eu não quero mais sentir. Se já matei alguém, não conheço, inté porque, se assim se deu, garanto, em nome de Jesus Cristo, foi pra que eu não cedesse lugar pra morte ou porque o infeliz blasfemou contra nosso senhor Jesus Cristo. Então, se já matei alguém, não conheço, nunca esperei pra ver o resultado; segui em frente, porque sertão é sertão.
E é pois, eu que da vida só sei viver, posso dar garantia, em nome de tudo que há na terra, que sempre busquei a calma da alma para o corpo não sofrer, mas, sertão é sertão, terra de luta e esperança. Terra dos dias secos e noites frias. Então quando tem rebuliço na alma, não vou negar, às vezes bebi mais que as pernas pudessem suportar. Sim. Andei trôpego e muitas vezes não achei o lugar de chegada, então dormi no meio da mata, no meio do caminho, coberto pela lua, que mais há de ser?
Trazido de volta pra um lugar que eu queria paz e descanso, custei entender que há coisas que a vida pode mais que nossa vontade. Eu não queria ser trazido de volta, não queria. Queria a paz e o descanso, mas, quando parei pra olhar, quer dizer, nem parei, quando minha alma se deu conta, já estava tomado. Já estava no dorso do cavalo, vestido de gibão e pés no estribo. Eita! Eita que acontece rápido demais! A gente nem se apercebe. É rápido demais da conta. Sertão, às vezes, é igual mulher: te laça de um jeito que não solta mais. Te prende mais que poliça, difícil soltar, sabe? Sertão é terra batida, pisada, socada, que te prende e não solta, te agarra como sucuri toda enrolada.
Mas eu não entendo, não. Tava na paz da alma, sem querência de mais nada, somente a paz de nosso senhor Jesus Cristo. Quando dei de perceber, tava lá, sozinho, arriba do cavalo e gibão. Pensei, sem pensar, como é isso, como é isso de a gente querer paz e descanso e não conseguir porque o rebuliço, o desgoverno da vida, pode mais que a vontade da gente?
Coisa descontrolada mesmo. Por mais que a gente resiste, faz planos de seguir caminho, uma direção diferente, não tem jeito, a vida vem, pega nossa mão, e leva a gente, mansinho mansinho; a gente vai obediente. É pois isso que acontece. E nem sei se a gente consegue resistir. Às vezes penso que não tem jeito, não tem como colocar obstáculo, se a vida quer, ah, duvido que alguém consegue dobrar as ordens da vida, ah não, acho que não. A vida é igual rio, segue seu curso. Mesmo se tem obstáculos, ela arrasta e leva junto, mas segue, não para não.
Sertão é sertão, tá dentro da gente.