Eu Te Entendo Pai
Distante...
Talvez, seja essa a definição de seu semblante. Um semblante distante em uma erupção de pensamentos incontidos e barulhentos. Para este homem, qualquer conflito interno é singular, solitário e incomunicável.
Um homem que não é bom em se expressar, nunca foi, e o sofrimento indizível é um bilhão de vezes pior que o dizível...
Alguém que guarda seus problemas para si, sempre sofrendo em silêncio. Dia após dia, diluindo suas angústias, anseios, e outras coisas mais, em um universo particular e misterioso.
Às vezes resmungando em sons guturais, coçando a cabeça ou assoando as narinas depois de tê-las cutucado. Sempre assim, algumas manias ininterruptas, outras de horário marcado. É como ele sempre faz.
É como ele sempre foi...
O telejornal no mesmo horário, enquanto olha fixamente para a TV, seguido de um instinto irreprimível de falar sozinho, delongando-se num monólogo truculento e aflitivo, ensaiando situações e diálogos, dos quais provavelmente, nunca verão a luz da realidade, nem acharão ouvidos de gente...
Exercícios imaginativos de alguém mergulhado em suas abstrações solitárias e desordenadas, com a mente para muito além do que assistira na TV. Orbitando ansioso, sabe-se lá onde...
Só Deus sabe.
Entra e sai dia, e os diálogos são cada vez mais difíceis. Houve um tempo, em momentos raros, em que se prestava a debater ideias. Na intenção de se equivaler, usava, ou ao menos [tentava], usar palavras difíceis, sempre truncando tudo, com a língua presa e um pouco de gagueira, vivia nesses momentos uma dualidade estranha, onde convencia-se de que melhorava, mas logo menos, repreendia-me:
"Já chega!"
Tolice, imaginara. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não havia nascido para falar certo.
"Você é estudado Raniel, eu não" - dizia.
Convencia-se no mesmo instante de que era assim, um ex-operário aposentado, ignorante, criado sem pai, acostumado a todos os abusos, violências e injustiças da vida.
Tomar rasteira nunca foi novidade pra ele, sendo a mais fatídica, a traição de alguém que o chamava de [amigo], onde a este "grande compadre", emprestara grande quantia de dinheiro. Dinheiro esse, que nunca mais viu...
Com um nó na garganta vivera, e se vendo vítima de sua própria ingenuidade, quando questionado não conseguia defender-se, e nem botar as coisas em seus devidos lugares. Por anos, o demônio daquela história entrava-lhe na cabeça e saía.
Em última instância, genioso muitas vezes, só queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. Uma ofensa aqui, outra ali, somadas a uma paciência quase nula, já era algo a se esperar. Um homem cujo coração não estava no peito, mas perto da goela. No silêncio, ao menos, creio que se recolhia na realidade dos fatos.
Só lhe restara a boa e velha boemia. Por séculos, o grande anestésico dos homens. Pelos bares, encontrara outros "bon vivant" de almas machucadas. Indivíduos com feridas no coração, tão grandes quanto o sorriso que estampavam no rosto.
Depois de se asfixiar pela fumaça dos cigarros e se afogar em cervejas, partia outra vez em busca do quarto... sua cama... sua TV. Entocava-se como um bicho, e ali criava raízes...
Refugiado em seu isolamento, julgando-se despercebido em seus desejos, manias e angústias, mal sabendo que meus olhos estavam sempre atentos em captar seus movimentos, tentando adivinhar coisas, ditas por muitos, [incompreensíveis].
Eu entendo você, pai.