O que quer Caio Fernando Abreu

É claro que ele não pediria que dele sentissem saudade ou que a ele fizessem menção. Não tantos anos depois. Ele pediria para que fôssemos felizes, ousados, que agarrássemos todas as oportunidades que surgissem pelo nosso caminho. Caio não quer ser lembrado — não já tantos anos depois. Caio está pronto para ser esquecido; só sendo esquecido é que se pode descansar.

O que Caio quer de nós é que continuemos. Que escrevamos e que leiamos mais, que mergulhemos mais profundamente nas entrelinhas, e que ousemos falar a verdade, mesmo quando ela provocar desconforto. Que deixemos as águas das cachoeiras limparem o que restou de nós mesmos, para que sejamos mais dignos, e assim possamos olhar nos olhos uns dos outros — o que temos feito cada vez menos.

Caio diria que tratássemos de resolver a nossa hipocrisia, que tomássemos menos remédios, que saíssemos para dançar, que fizéssemos de tudo para resgatar o brilho dos olhos, até que cheguem a ficar miudinhos e apertados, quando sorrimos largo. Caio diria que seguíssemos em frente, que fizéssemos do mundo um lugar menos aborrecido, menos careta, menos injusto, menos cínico.

Não é fácil dar um passo na direção certa quando tudo parece tão incerto. Nesse caso, só os afetos é que prevalecem. Caio pediria para que nos voltássemos uns aos outros, com vontade de construir uma realidade menos morta. E que tivéssemos a franqueza e a honradez de dizer: “eu não sei por onde começar, mas quero que a gente possa descobrir juntos”.

Caio pediria para que passássemos menos tempo nos relacionando por telas, e diria que tecnologia demais é cafona. Pediria para que vigiássemos o nosso narcisismo, nosso egoísmo e nossa busca por validação externa. Caio diria que é importante estar sempre um pouco desajustado — para produzir arte, sobretudo.

Caio diria muitas outras coisas, entre miradas pela janela em direção ao horizonte —que se tornara acavalado de prédios—, entre bebericos de uma xícara de café e entre suspiros um tanto tediosos, próprios do mundo dos mortos, cujos vestígios ainda nos habitam.

Ainda sobre os mortos: por vezes, somos atravessados tardiamente por suas ausências, e sobrevêm instantaneamente a nossa constatação do quanto tudo mudara, desde suas partidas. Das lições ensinadas por aqueles já se foram, resta aos vivos indagar: o que diriam eles do que restou do mundo? A história é sempre um convite ao passado. Essa é a sua sutil maneira de permanecer em nós.

Por fim, é claro que Caio diria que esse texto precisa de ajustes, sem pudores; contudo, seguramente, ele o faria com a delicadeza de sempre.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 19/12/2023
Reeditado em 20/12/2023
Código do texto: T7957225
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