Sertão em prosas e sonhos: um tributo à cultura do Nordeste

Sertão em prosas e sonhos: um tributo à cultura do Nordeste

Em um devaneio, imerso entre conhecimento, lembranças e imaginação, revivi a trama vibrante da história do Nordeste brasileiro, como se as palavras dessem ritmo à vida. O sonho foi como um caminho pelas memórias nordestinas, paraibanas e sousenses, tecendo uma narrativa e parafraseando canções que, não apenas relatam, mas homenageiam a riqueza cultural e histórica dessas terras prósperas, enfatizando a importância de contar e preservar essas memórias.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que os navegantes portugueses haviam descoberto o Brasil no Nordeste. Eu vi a primeira missa, o início da colonização e a infausta chegada dos primeiros navios negreiros, denunciados pelos poemas de um rapaz de nome Antonio Frederico de Castro Alves. Eu vi as capitanias hereditárias, canaviais na zona da mata e o gado chegando no interior. Eu tive pesadelos com insurreições, guerras, conjurações, revoluções e com a sanguinolência de entradistas e bandeirantes. Eu vi a instalação da primeira capital do Brasil. Eu vi franceses e holandeses guerrearem por este orbe.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que a região Nordeste era um celeiro da intelectualidade brasileira. Sonhei que aqui haviam nascido Rui Barbosa, Anísio Teixeira, Gilberto Freyre, Joaquim Nabuco, Paulo Freire, Josué de Castro, Assis Chateaubriand, Câmara Cascudo, João Ubaldo Ribeiro, Alcides Carneiro, Celso Furtado, Marcondes Gadelha...

Eu tive um sonho infeliz. Eu sonhei com secas inclementes assolarem os nordestinos, trazendo miséria e desolação. Eu vi a sede matar o gado e o alazão. Eu vi a triste partida do pobre nortista para tentar a sorte no sul. Eu vi retirantes sertanejos desesperançosos em um pau-de-arara. Eu vi o lamento sertanejo e a súplica cearense por meio do canto do vem-vem. Eu vi a asa branca bater asas do sertão. Eu vi o adeus a Rosinha e o choro dela, longe muitas léguas, numa triste solidão.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que a região Nordeste era a mais autêntica região do continente brasileiro, idolatrada em prosa e verso pelos maiores poetas e artistas que este país conheceu. Eu sonhei com José de Alencar, João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Gonçalves Dias, Castro Alves, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Aluizio Azevedo, Luiz Gonzaga, Zé Dantas, Humberto Teixeira, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Patativa do Assaré, Dominguinhos, Geraldo Azevedo...

Eu tive um sonho trágico. Eu sonhei com um herói dos Palmares cruelmente perseguido, torturado e assassinado, num soturno 20 de novembro de 1695, por uma causa, uma nobre causa. Eu vi a covardia do exército brasileiro ao massacrar um povoado inteiro, mas não vi o motivo de tamanha crueldade, naquele malogrado ano de 1897. Eu vi um padre do Cariri cearense arregimentar fiéis e deflagrar uma guerra santa contra o poder estatal, contra a opressão dos governos federal e estadual. Eu vi o padre, em conluio com beatos e coronéis, invadir uma capital e vencer o conflito messiânico, nos idos de 1913 e 1914.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com rios, açudes e barragens reflorescendo uma caatinga resistente e brava, renascendo das cinzas ao simples bafo da neblina. Eu vi jardins floridos, graças ao encanto e imponência dos cactos, aroeiras, mandacarus, carnaúbas, juremas, coroas-de-frade, juazeiros, palmas, xique-xiques, umbuzeiros, angicos, marmeleiros, caroás.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um caboclo sonhador numa feira de mangaio em Petrolina-Juazeiro. Eu vi meio zangado o velho Jacó exigir que Luiz respeite Januário. Eu vi a saga de um vaqueiro, de uma mulher rendeira, de Bráulio, de Ivanildo e de Elba por um Nordeste independente. Eu vi o mandacaru florar na seca e a eufórica volta da asa branca. Eu vi a Feira de Caruaru, o maior São João do mundo e o sol nascer primeiro em “Paraíba joia rara”.

Eu tive um sonho sinistro. Eu sonhei com os ataques sorrateiros dos vingativos cangaceiros. Eu vi justiça com a lei do punhal e do bacamarte. Eu vi um cangaceiro romântico nas bandas de Patu viver e morrer, com não mais que 35 anos, no século da história. Eu vi um bandoleiro das selvas nordestinas, sem temer a perigo nem ruínas, se tornar o rei do cangaço no sertão. Mas eu vi o começo do sangrento dia 28 de julho de 1938. Eu vi um homem valente e sua amada assassinados numa emboscada na gruta de Angico, em plena na caatinga, no seu habitat natural. Eu vi suas cabeças decepadas e expostas como troféus em praça pública. Apesar de Corisco, eu vi a extinção do velho cangaço.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que xique-xique era a bandeira do Nordeste e que “Asa Branca” era o seu hino oficial. Eu vi um rei magnificamente coroado sob o ritmo frenético do xaxado e do baião. Eu vi que o chapéu de couro era a sua coroa; a sanfona, o seu cetro; a música, o meio de comunicação com os súditos. Eu vi o vaqueiro, o cangaceiro, o jangadeiro, o cassaco, o aboiador e o cantador de viola exaltados em canções e repentes.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com gente na Paraíba criando devaneios, fábulas, imaginações, retratando a face trágica e bela deste sertão, reinventando a literatura e a arte brasileira. Eu vi José Américo de Almeida, Leandro Gomes de Barros, Anaíde Beiriz, Pedro Américo, José Lins do Rego, Augusto dos Anjos, Celso Mariz, Ignez Mariz, Jackson do Pandeiro, Sivuca, Geraldo Vandré, Deusdedit Leitão, Wilson Seixas, Julieta Gadelha, Ariano Suassuna, Gastão de Medeiros, Lucíola Marques, Paulo Gadelha, Francisco Pereira Nóbrega e Eilzo Matos nascerem nestas terras.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com uma festa do interior. Eu vi fagulhas, pontas de agulhas. Eu vi brilhar estrelas de são joão, babados, xotes e xaxados. Eu vi em Alceu a anunciação de uma moça bonita, uma morena tropicana. Eu vi o fim da solidão na la belle de jour. Eu vi um girassol nos teus cabelos, batom vermelho, girassol. Eu vi um coração bobo, coração bola, coração balão, coração São João.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com o surgimento de um pequeno povoado, às margens de um belo rio de águas límpidas e correntes, cheio de peixes. Antes, vi que era habitado apenas por monstros pré-históricos gigantes. Eu vi um imenso vale repleto de pegadas fossilizadas com mais de 65 milhões de anos. Eu vi, tempos depois, uma colossal rodovia no norte riscar o Brasil de leste a oeste.

Eu tive um sonho apavorante. Eu sonhei com muitos índios, despidos de roupas e cobertos de inocência. Eu vi que a povoação crescia, à medida que substituíam, de maneira não civilizada, os índios por homens brancos. Eu vi o sangue dos índios indefesos jorrando no solo fértil desta pátria. Eu vi a cara da barbárie com ódio, face e mãos humanas.

Eu tive um sonho tenebroso. Eu sonhei e tremi com aqueles nefastos dias 11 de setembro de 1922 e 12 de outubro de 1923. Eu vi o cangaço chegar à Fazenda Jacu, à imponente Serra de Santa Catarina e à abençoada vila de Bento Freire. Eu vi o trágico episódio de 27 de julho de 1924. Eu vi uma próspera cidade sitiada por mais de 80 bandoleiros. Eu vi um jovem destemido andar por caminhos errantes e ser executado, covardemente, com as mãos algemadas, pela polícia, aos 28 anos de idade. Eu vi o seu atestado de óbito, datado de 28 de outubro de 1928, nos versos de um repentista, em plena feira de um sábado cinzento. Eu vi a fibra de uma viúva de 17 anos com três crianças órfãs de pai. Eu vi que seu pai, seu irmão, seu sogro, seu cunhado e seu marido foram assassinados de forma brutal. Eu vi a dor e a morte visitarem aquela família com bastante assiduidade. Eu vi o coração da matriarca dos “Pereira” parar depois de tantas agonias nessa vida. Eu vi um padre narrar, com tintas de sangue, a comovente história do pai cangaceiro. Eu vi aquele prefácio impactante de Rachel de Queiroz. Eu vi um senhor centenário, único irmão remanescente daqueles tempos de horror, com os olhos cheios de lágrimas, contar e recontar essas histórias centenas de vezes.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um ex-garoto de aluguel, saído do Jardim das acácias, da Vila do sossego, fazer uma canção agalopada. Eu o vi apaixonado, sob os mistérios da meia-noite, andando por um chão de giz, entre a serpente e a estrela. Eu vi um cidadão, neto de Avôhai, crítico do “admirável gado novo”, em um romance com uma mulher nova, bonita e carinhosa. Eu o vi fazer um extraordinário frevo mulher para ela.

Eu tive um sonho angustiante. Eu sonhei com uma Paraíba destemida “negar” apoio ao candidato do Palácio do Catete. Eu vi um coronel comandar uma revolta da Princesa. Eu vi uma guerra civil chegar ao sertão da Paraíba. Eu vi um presidente, por discórdias políticas e pessoais, tornar pública a intimidade de um jovem casal. Eu vi um assassinato na Confeitaria Glória comover o país e mudar a história da República, naquele 26 de julho de 1930. Depois eu vi uma sequência de execuções sumárias. Eu vi sangue paraibano derramado até na Capital Federal, numa tocaia no cruzamento das ruas Riachuelo e Inválidos, em 9 de outubro de 1930. Eu vi o pequeno Ariano ficar órfão de pai com apenas 3 anos de idade. Eu vi uma poetisa viúva sucumbir a tantas desgraças, aos 25 anos de idade. Eu vi a bandeira do estado enlutada e manchada de sangue. Eu vi a mudança do nome da capital em homenagem a uma das vítimas daquele terror. Eu vi a Revolução de 1930 chegar a Sousa, com chuvas de bala e de sangue.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com uma igrejinha e com um enigmático milagre. Eu vi um padre se intrometendo na política e constituindo família, uma grande família, logo a maior linhagem de todo este sertão de meu Deus. Eu o vi cuidando de uma charmosa fazenda com uma lagoa redonda no seu coração. Eu vi um coreto, uma praça e uma igreja monumental. Eu vi uma importante festa religiosa, com parques, quermesses e outras atrações. Eu vi a cidade passada a limpo sob o tamarineiro do Major Gadelha. Eu vi o ouro branco trazer riqueza para o sertão. Eu vi a ascensão da família Gadelha, por intermédio de homens empreendedores e arrojados. Eu vi uma estação ferroviária e uma enorme feira e um mercado no seu terreiro. Eu vi aquela “máquina” de Emídio Sarmento. Eu vi surgir uma poetisa, descendente do padre, contando todas estas histórias, com receio de que ninguém mais as contasse, que elas se perdessem na poeira do tempo.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um futebol arte nos gramados sertanejos. Eu vi uma equipe rubro-verde quase imbatível no sertão. Eu vi até Garrincha muito bem vestido com aquela linda camisa. Eu vi um tal de Edilson, um tímido Perpétuo e um modesto Messias fazerem mágicas com a bola nos pés. Numa tarde festiva, eu só acreditei porque vi Edilson deixar toda a defesa do Sergipe no chão, três vezes. Eu vi o Marizão e o glorioso Dino do Sertão ser duas vezes campeão. Eu vi um Sousa afoito encarar o Flamengo de Romário e companhia, em TV de rede nacional, de igual para igual, numa noite de 7 de março de 1995.

Eu tive um sonho pesado. Eu sonhei com um jovem político do clã dos Marques fazer história em Sousa, na Paraíba e no Brasil. Eu vi uma vitória apertada em 1963 e aquela derrota dolorida eleitoral de 1982. Eu vi uma campanha vitoriosa em 1994 e Sousa assumindo o tão sonhado Palácio da Redenção. Mas eu vi, nove meses depois, o câncer derrotar um governador e desalentar uma cidade inteira. Eu vivi aquele nefasto 16 de setembro de 1995.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um velho do rio fazendo versos e cuidando com carinho de um insigne vale. Eu também vi que aquele vale era a sua casa, a sua vida. Eu vi a queda das torres sagradas e sua fatigante restauração. Eu vi uma cidade com muitas praças em cores vivas, ruas trajadas de paralelepípedos e asfalto e um lindo portal: pré-histórico, contemporâneo e fotogênico. Eu vi um jovem pescador de poesia (en)cantando “um pedacinho da Paraíba”.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com passeatas políticas titânicas e campanhas eleitorais acirradíssimas dividirem literalmente a cidade. Eu vi sogro versus genro, Mariz versus Gadelha, vermelho versus verde, primo versus primo. Eu vi 7 votos decidirem uma eleição no Século XX e 121 votos decidirem outra no Século XXI. Eu vi aquele primeiro e acalorado debate em TV ao vivo, em 2000. Eu vi a briga do filho de Zé Gadelha com o Filho de Edvar Matos. Eu vi aquela eleição durar quase dois anos. Eu vi uma cidade encarnada em 2004. Eu vi a municipalização da eleição estadual de 2006. Eu vi uma cidade rubro-verde em 2008.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com a educação, cultura e a literatura transformando este sertão. Eu vi a Casa da Caridade, o Colégio 10 de Julho, o Colégio São José de Sinhorzinho, o Colégio Comercial, o Colégio de João Romão, o Colégio das Freiras, o Colégio de Macedo e a Faculdade de Direito. Eu vi o alto falante de Eládio Melo, a difusora de Seu Vila, o Memorial Antonio Mariz, o Memorial Tozinho Gadelha, o Cine Sousa, o Cine Teatro Glória, o Cine Moderno e o Cine Gadelha. Eu vi uma obstinada madre cearense disseminar educação, cidadania, fé e amor por esta cidade. “Além do Rio”, eu vi “A Barragem”, “Letras do Sertão”, “Gazeta de Sousa”, “Vingança, não”, “Os Pordeus no Rio do Peixe”, “Minha terra, minha gente”, “Antes que Ninguém Conte”, “Inventário do Tempo”, “História Política de Sousa”, “Sousa: uma cidade perdida em sua história”, “A saga da Família Mariz” e “As Minorias de Deus”. Eu vi um Centro Cultural federal espetacular, inaugurado por um Ministro de Estado, hoje imortal da ABL, depois vi outro municipal do mesmo nível. Eu vi as “Quintas Sinfônicas”. Eu estava lá na minha terra, naquela memorável noite de 13 de agosto de 2020, em pleno auge da pandemia.

Eu tive um sonho. Eu sonhei que o povo simples do sertão da Paraíba via chegar uma nova gente, de longes terras, de outros nortes. Eu vi pessoas de pele alva e linguajar estranho construírem uma rua de dezesseis casas. Eu os vi se posicionarem à espreita nos desfiladeiros das montanhas sertanejas para surpreenderem o rio. Eu vi maquinários monstruosos e modernos. Eu vi uma casa-de-força gerar energia para um sertão de noite apagada. Eu ouvi uma sirene ditar o ritmo dos trabalhos de milhares de cassacos. Eu vi o que se passou no sertão naqueles anos de 1921 a 1923.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com a criação de uma inspetoria federal para lutar contra as secas. Eu vi um paraibano assumindo a Presidência da República. Eu vi o seu empenho para acabar com o sofrimento dos nordestinos. Eu vi os açudes e reservatórios que ele idealizou. Eu vi a alegria no rosto suado e sofrido do camponês, chapéu de palha na cabeça e a esperança de dias melhores dentro dela. Eu ouvi o silêncio do descaso estatal, do abandono. Eu vi o recomeço com a visita presidencial de Vargas em 14 de setembro de 1933 e a inauguração do Catete. Eu vi a instalação do principal posto agrícola do Nordeste e a I Exposição Agropastoril do sertão da Paraíba. Eu vi aquele festivo e inesquecível 5 de novembro de 1934.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com afloramento de um lugarejo artificial repleto de maravilhas naturais. Eu vi a construção de uma vultosa barragem de pedra, ferro e concreto, com o intuito de barrar um rio quando ele aqui tentasse passar, outrora repleto de piranhas. Eu vi as serras sendo dinamitadas. Eu vi suas gargantas serem tapadas sinteticamente, para impedir que as águas fugissem. Eu vi tantos operários que pareciam formigas. Eu vi cassacos sendo engolidos pela monstruosidade da parede de concreto. Eu vi a greve dos rios contra o mar. Eu vi escritórios, acampamentos, cooperativas, hospitais, casas de hóspedes, postos de agronomia, zootecnias, guindastes, cabos aéreos e fabricas de gelo. Eu vi o homem brincando de Deus...

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um atraente açude jorrar água rio afora. Eu vi duas ilhas encantadoras e uma gruta formosa. Eu vi verdes pastos e colheitas fartas. Eu vi um instituto com um laboratório de ponta irradiar conhecimento e pesquisa para todo o Nordeste, para todo o Brasil. Eu vi um hotel pomposo na década de 1930, em pleno sertão, e um edifício suntuoso, inaugurados pelo “Pai dos pobres”. Eu vi fotos históricas no dia 6 de fevereiro de 1936 e uma foto oficial icônica, em 16 de outubro de 1940. Eu vi presidentes da República e altas autoridades federais pernoitarem no chão sagrado do semiárido paraibano. Eu vi as pegadas literárias e artísticas de Gonçalves Dias, Zé Américo, Zé Lins, Jackson (o do pandeiro), Gonzagão, Sivuca e Ariano neste torrão.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com canais de irrigação, grandes e pequenos, e um moderno sistema de drenagem. Eu vi um bom mineiro, agrônomo, naturalizado paraibano, semear os sertões nas décadas de 1930 e 1940. Eu vi uma HPS fecunda, um silo aéreo majestoso, uma casa de farinha, pomares, sítios e três agrovilas produtivas. Eu vi videiras, arrozais, milharais, goiabeiras, tomateiros, umbuzeiros, bananais, mangueiras, feijoeiros. Eu vi oceanos de coqueirais a perder de vista, com a mais saborosa água de coco do mundo, e um prestigiado festival para celebrar essa fartura.

Eu tive um sonho sinistro. Eu sonhei com muitas tragédias, inundações, naufrágios, secas e assombrações. Eu vi a queda daquela aeronave em 26 de abril de 1932. Eu vi a fatalidade de 10 de abril de 1948 com o afogamento de duas jovens irmãs. Eu vi muita gente tragada pela força da água sobre o paredão de concreto. Eu vi aquele homicídio no Catete, naquela horrenda manhã de 29 de junho de 1964. Eu vi um acidente fatal com um jeep aero willys oficial. O ano era 1981. Eu vi acidentes, suicídios e assassinatos destruírem famílias. Eu vi botijas, criaturas sobrenaturais e almas penadas. Eu vi um irracional atentado à gruta da fé católica, naquele profano dia 2 de dezembro de 1993. Eu vi as estupendas e pavorosas cheias de 1935, 1963, 1974, 1985 e 2008. Eu vi toda aquela aflição na madrugada de 21 de fevereiro de 1935. Contudo, eu vi aquelas secas de 1932, 1942 e 1958. Eu vi um acidente grave em 25 de novembro de 2010 atrasar o início de um festival, em virtude da morte do seu criador, o filho mais novo de Zé Gadelha. Eu vi a cumplicidade de uma seca recente e muitos incêndios dizimarem o principal cultivo de uma região. Eu vi, consternado e apreensivo, depois de 80 anos, o açude secar. Eu vi Boqueirão, Coremas, Castanhão e os rios do Peixe, Piranhas e Piancó agonizando.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com uma casa de pólvora se transformar em uma cadeia e depois em um badalado mirante, com o pôr-do-sol mais admirável do sertão. Eu vi uma distinta professora impor medo, respeito e admiração com o emprego das rígidas práticas pedagógicas das décadas de 1950 e 1960. Eu vi a brilhante saga da sua genealogia (Os Pordeus) no Rio do Peixe. Eu vi um cartão postal de tamarindos deslumbrante com uma assombrosa botija no seu interior. Eu vi o Ceres Clube, uma piscina, um glamoroso Parque das acácias e o I Encontro Nacional de Astronomia do Brasil.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com um futebol vistoso no "Paulão", nas pretéritas tardes de domingo. Eu vi e vibrei com os belos dribles e gols de Alcides, Zilton, Chico Antunes, Bastião do Coco e Pelado. Eu vi a elegância sutil de Chico Chagas e Élio. Eu vi as impressionantes defesas de João Cebola, Cobel, Caçote, Laércio e Pedrinho. Eu vi a dedicação de Luis Rebouças, Otávio, Regivardo, Ageu, Manoel do Coco, Libério, Célio e João Lopes. Eu vi, com os meus próprios olhos, o Ceres derrotar a todo-poderosa Sociedade. Eu vi aquele espetáculo de 1º de maio de 1974 contra a equipe profissional do Botafogo de Cajazeiras. Eu vi o gol de Fuba e o (potente) chute de Zamba explodir no travessão. Eu vi a tabelinha entre Chico e Tião resultar em um gol primoroso. Eu ouvi o comentário de Perpétuo sobre o futebol de São Gonçalo.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com muita cultura e comunicação popular. Eu vi Maia e Cecílio trazendo informação, música e entretenimento com a “RCA Victor” e a “Difusora Voz da Liberdade”. Eu vi as fotografias da câmara escura, de Gabriel, de Otoniel, de Antonio Luiz e de seu filho. Eu vi o parque de Seu Emídio, muitos circos, com Guri, Chimarrão e outros palhaços. Eu vi a modernidade do cinema chegar ao sertão em telas monocromáticas. Eu vi o cartaz do filme na praça e a sua divulgação na difusora de Cecílio. Eu vi desfiles cívicos memoráveis, primeiros de maio encantadores e encontro de bandas e fanfarras magistrais. Eu vi o Estevam Marinho, o Guimarães Duque, o Clube 4S e a Escola Degma Lúcia. Eu vi o surgimento da Agrotécnica em 1987, trazendo ensino profissionalizante de qualidade e desenvolvimento social.

Eu tive um sonho. Eu sonhei com o surgimento de um novo instituto, com educação, ciência e tecnologia avançadas. Eu vi um expressivo encontro reunir velhos conterrâneos e amigos, outrora dispersos país afora. Eu vi a concretização de um sonho antigo com a chegada de águas distantes. Eu vi uma gente perplexa ao avistar dois grandes rabos de pavão e um pequeno jacaré.

Eu tive um sonho terrível. Eu sonhei com a morte impiedosa adentrando à minha casa. Eu a vi dilacerar destinos ao levar a minha mãe e conduzir toda uma família a uma orfandade sem limites. Eu a vi conseguir a vil proeza de fazer um herói, de nome Tarzan, chorar pela primeira vez, depois de oito décadas de vida. Eu vi e vivo cada cena daquele fatídico 27 de julho de 2023, como fragmentos de um poema sombrio ecoando incessantemente pela minha mente. Eu vi e senti na alma a dolorosa realidade da efemeridade da vida, instigando-me a contemplar as nuances mais profundas e, por vezes, desconhecidas da condição humana.

Neste relato, que mescla prosa e poesia, exploramos os caminhos do sertão nordestino e paraibano, entre sonhos e lembranças. O texto evoca a essência invulnerável do homem sertanejo, testemunhando não apenas o passado, mas pulsando com a vitalidade que transcende o tempo. Que estas palavras, como sementes, germinem nas mentes dos leitores, preservando raízes e inspirando novos capítulos na história do Nordeste. O sertão, em sua eterna resiliência, continua a ser fonte de inspiração, transformando memórias em ecos perenes.

Eu tive um sonho. E foi real...

Sousa-PB, 27 de dezembro de 2023.

Josemar Alves Soares

Escritor

Josemar Alves
Enviado por Josemar Alves em 06/12/2023
Reeditado em 29/02/2024
Código do texto: T7948093
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