Um simples rastro

Um simples rastro

A vida de todo ser humano é um caminho em direção a si mesmo, a tentativa de um caminho, o seguir de um simples rastro. Hermann Hesse

Rastejo. Tateio. Apalpo como quem busca o braile da memória na mais vã tentativa de encontrar o caminho, mas avança na contramão. Como é difícil interpretar-se pela tendência que temos de nos reconhecermos mais ou menos fracos diante do universo de possibilidades que temos diante de nós. Por isso a angústia, a vertigem do óbvio, o lugar-comum da sabotagem, a sensação de despreparo diante da vida inédita e, ao mesmo tempo, reprodutora de representações banais.

Agora dormito com o relógio sob o pulso, acordo como quem sonha em vida e em sonho vive. Preciso ler em voz alta para voltar a acreditar no poder transformador das palavras. Necessito usar-me da força para escrever e quem sabe crer que isso possa modificar alguma coisa de modo realmente significativo. A sensação é de que já disse tudo isso, e essa mania de repetição é só uma forma de não encarar alguma verdade inconveniente. Talvez tenha escolhido andar por um mundo escuro para que eu tivesse a pretensão de iluminá-lo ou esteja obscurecendo o clarividente desejo de não ser quem sou.

A própria consciência promove a discórdia. O que dirá o inconsciente quando o choro puder florescer um eu aparentemente distante, o contrapeso da verdade inventada, da fantasia investida para sobreviver ao mundo em que estamos apenas fingindo sanidade. Mas, por fim, a cólera vem e mostramos a face represada, o grito rouco ganha potência e assusta até mesmo o autor, que se desconhece, que se envergonha e tenta inutilmente se redimir. Então, muda-se o assunto para não emudecer, porque a sequência desordenada de palavras dá o conforto que procura.

Aparentemente sem conexão, vou rendilhando palavras, sem dever razão para tudo. Dentro da grandeza que se cria uma pequeneza se esconde. Agora sou todo lembrança e nada esperança. E às vezes me vejo paralisado, questionando-me sobre o que penso em dado momento. Não sei. Olho-me no espelho e vejo um estranho, com olhar acriançado, temente a não sei o quê. É que tem hora que não caibo em mim. A carência me surpreende com um sorriso de quem cultiva um mistério e se nutre dele para que se fomente uma solidão criativa. Só hoje observo como o silêncio é envolvente para a criação da vida. É como após o gozo ouvíssemos apenas a (trans)piração.

Eu não desejaria a eternidade em (a)braços que não contemplassem o agora. Folheei os álbuns de fotografias e não teve nada nas imagens que, de fato, me retratassem. Havia porta-retratos, mas não portavam reminiscências. Eram apenas feixes de luz, algumas pessoas aprisionadas no tempo. Um mundo plastificado. Colecionando relógios, não retenho as horas.

Sobrevivi, mas não por inteiro. Ninguém está livre de sofrer os lutos diários. A parte que sobra é apenas uma rosa no meio de um deserto. Estiolados na aridez da existência, caminhamos levados pelas miragens, num beco sem saída sem sabermos o que fazer conosco. Como dar corpo a fantasmas? Munidos de ilusões, vamos nos fazendo reféns de nossas vontades, nos autossequestrando.

Já contei muitas histórias para mim, renunciei meu nome de batismo a fim de me conferir outra identidade. Mas é injusto dizer “estou sozinho”, pois um contingente enorme está espelhado em meu peito.

Por vezes inverti a ordem do que era essencial e me amargurei, regurgitei a peçonha desse erro em sucessivos escarros. “Percebi que todas as coisas que temia e receava só continham algo de bom ou de mau na medida em que o ânimo se deixava afetar por elas”, escreveu Spinoza. Por que pagar pedágio ao sofrimento?

A resposta que dei à dor foi a poesia. E ao silêncio eu o reverti em palavras. Lavrei todo o terreno do obscuro para que germinasse o significado. Cresceu o norte e nasceu a minha rosa dos ventos interior. Não sou mais uma bússola quebrada. Alguma direção já tenho e isso me guia a ser um pouco mais do que jamais fui, emoldurado na condição de ser errante, agente da palavra, numa espantosa mística...

Leo Barbosa é professor, poeta, escritor e revisor de textos.

(Texto publicado em A União em 01/12/2023)

Leo Barbosaa
Enviado por Leo Barbosaa em 03/12/2023
Código do texto: T7945916
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