Cigarras do Passado. Violinos do Futuro.
Tenho escassas lembranças de minha infância, o que é irônico, já que uma das minhas habilidades mais notáveis é a memória de longo prazo. Talvez traumas tenham fechado as portas ou construído muros nessa parte do meu cérebro, isolando tais recordações de tempos mais jovens.
No entanto, recentemente, uma lembrança surgiu, como se alguma barreira tivesse sido rompida.
Nesse lampejo do passado, me vejo nos verões ensolarados, quando passava horas na casa de meus avós, caçando cigarras. Em minhas caçadas, só encontrava as cascas vazias desses seres cantantes, enquanto elas, as cigarras, gargalhavam do alto das mangueiras, parecendo rir de minha inútil perseguição, uma risada suave e zombeteira que ecoava através das folhas.
Porém, há uma nuvem de incerteza pairando sobre essas lembranças. A história de meu eu infantil, nesse período distante, me foi contada por terceiros, e às vezes me pergunto se essas memórias são genuínas ou se tornaram entidades próprias, tão reais como qualquer outro episódio de minha vida. Afinal, na medida em que algo é lembrado, não se torna real? Em nossas mentes, essas memórias, mesmo que possam ter sido inventadas, tornam-se parte de nossa realidade.
Salvador Dali, o mestre da surrealidade, em algum momento, afirmou que recordava o tempo que passou no útero de sua mãe. Suas palavras me fazem questionar: será a memória apenas uma ilusão, uma narrativa que aceitamos cegamente como verdade? São histórias que criamos, relatos que aceitamos como verdades e que, assim, se tornam, de fato, nosso concreto.
Eu, em toda minha vida, fui habitante de mundos irreais, construindo e destruindo construções criativas dentro de meu próprio universo mental. Ultimamente, tenho registrado em histórias essas viagens pela paisagem de minha mente, capturando um vislumbre das maravilhas e mistérios que ali residem.
Uma dessas experiências ocorreu bem recentemente, perto da minha casa, onde consigo ouvir frequentemente o som de violinos sendo tocados. Às vezes, as notas saem desafinadas, enquanto em outras ocasiões, elas fluem de maneira harmoniosa, preenchendo algumas tardes com sua música. Em minha mente, criei um cenário onde alguém se dedica intensamente a dominar a arte do violino.
Na minha mente, criei um cenário intrigante. Imaginei uma pessoa jovem, dedicada e apaixonada, que estava empenhada em se tornar uma mestra na arte do violino. Essa ideia persistiu em minha mente por quase dois anos. Em certos momentos, eu visualizava essa pessoa tocando seu violino diante de grandes plateias, e me surpreendia ao pensar que essa talentosa artista morava perto de mim. Eu a via desde os desafinos iniciais até o momento em que suas melodias se tornavam verdadeiras obras-primas. Minha mente criativa articulava inúmeros cenários, alguns em que eu me aproximava, tocava a campainha e a parabenizava quando sua música estava sublime. No entanto, todos esses cenários tinham algo em comum: uma pessoa dedicada, trabalhando incansavelmente para aprimorar sua técnica, mas sempre solitária, as vezes até depressiva, semelhante ao som do violino tocado.
Todavia, há pouco, tive uma decepção em relação a essa história que construí. Uma memória (ou ilusão) foi despedaçada, caindo ao chão como poeira. Vi, de fato, o que acontecia naquela casa. Duas pessoas adultas saíram, uma delas carregando uma caixa que parecia do tamanho de um violino, enquanto a outra falava alto: "Semana que vem, no mesmo horário?"
Agora, me vejo diante do desafio de criar ideias ou memórias ou ilusões para se encaixarem nesse novo cenário. Ainda assim, estou de luto pela jovem que não se apresentará diante de grandes públicos, pela mestra do violino que existia apenas em minha imaginação.