Maria, Maria

(Gabriel Resgala)

Maria era pobre. Pobre e batalhadora. Sabia de onde era, de onde viera: era do povo, era Maria. E Maria “é o som, é a cor, é o suor!”, como diz o Bituca...

Maria era linda! Daquelas que encantava a todos só com o olhar... “um dom, uma certa magia”...

E Maria era garota “de responsa”: era forte, decidida, mas também sabia ser humilde, meiga. Tinha o poder de transmitir respeito por onde passava, mas acima de tudo transmitia uma paz... A paz de quem sonha, de quem ama!...

Até que um dia ela teve, por assim dizer, a sorte grande. Iria receber a maior graça que um pobre pode ter, o maior dom: um filho. Maria ficou tão alegre que vivia cantando... Dizia que queria que todos se lembrassem de como ela era afortunada, de como sua vida era repleta! “Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do planeta!” Que merece ser feliz!

Maria ainda não era casada, é verdade, mas seu noivo, o Zé, homem de fé, entendeu o lado dela, e deu todo o apoio de que ela poderia precisar. “Estamos nessa juntos pro que der e vier”, disseram.

E o que “deu e veio” não foi nada, nada bom: num mundo de individualismos onde todos só olham pro seu umbigo, pobre só tem vez quando consegue se unir em comunidade. E os coitados, por conta de uma burocracia danada, foram obrigados a viajar bem na época do parto, pra um lugar onde não conheciam ninguém, não tinham em quem se apoiar. Não deu outra: o nenê não teve direito nem de um lugar descente pra nascer, ninguém deu atenção praquele casal pobre vindo de outras bandas. E o garoto veio ao mundo num lugar qualquer...

E depois os três tiveram de enfrentar a crueldade do governo, que tá sempre querendo arrumar um jeito de diminuir a quantidade de pobres do mundo... Mas Zé e a Maria foram vivos! Não tinham muito estudo, mas eram espertos, inteligentes, sábios! Fizeram tudo pelo filho, não era qualquer um que iria conseguir acabar com a vidinha dele, não!... E foram levando assim a vida, batalhando, nunca pensando em perder a fé. E construíram uma família linda, a custo de muito suor e amor!

E o filho virou um grande homem, mas grande mesmo, daqueles de dar orgulho a qualquer mãe. Às vezes ele parecia meio ríspido com ela, é verdade... Mas ela não ligava: “os filhos a gente cria é para o mundo, não é mesmo?” Ela sabia que a missão dele era maior. E além do mais ele nunca a deixou desamparada, nunca deixou de atender o que ela pedia...

E, de mãe, ela se tornou sua maior admiradora. E Maria sabia que ele queria era isso mesmo: mais que uma genitora, uma companheira. Mais que parentes de sangue, o cara buscava era parceiros, pessoas que compartilhassem seus ideais. E Maria estava sempre ali pro que desse e viesse, verdadeira irmã, amiga de fé, camarada!

Mas a honestidade do filho foi longe demais... Não disse nenhuma mentira, mas nunca teve vergonha de dizer a verdade. E essa sem-vergonhice fez com que ele pagasse caro. Uma pena proporcional à sua coragem.

E Maria estava ali. Estava ao lado dele na hora em que ele mais precisou, na hora em que todos sempre clamam pela mãe. Sua dedicação de mãe também foi proporcional à coragem do filho, à vontade que ele tinha de fazer o que tinha de ser feito. O filho, pra ela, era mais importante que si mesma, e isso fazia sua vida ter sentido. Nisso consistia sua felicidade, mesmo que tivesse de deixar tudo pra trás pra sofrer ao lado dele. É como se diz, “quem traz no corpo a marca ‘Maria’ mistura a dor e a alegria”...

“Marca Maria”: a marca do amor. Do amor puro, desprendido, imenso, ágape. De quem sabe que dar a vida pelos outros é a melhor forma de dizer que gostamos de viver...

E ela sofreu a pior dor que uma mãe pode sofrer: viu seu filho morrer, sem poder fazer nada. Da forma mais cruel possível, da forma mais injusta, daquele jeito que revolta até o último fio de cabelo, dá vontade de gritar, de urrar, de explodir, de quebrar tudo! Mas Maria sabia que “é preciso ter força, é preciso ter raça, é preciso ter gana, sempre! Quem traz no corpo essa marca possui a estranha mania de ter fé na vida!”

E a fé não foi em vão! A fama daquele homem logo se espalhou, como que se sua morte fosse apenas aparente, fosse a forma de fazer com que sua mensagem permanecesse viva. E se lembraram também de Maria, recordavam dela com carinho. Sua vida foi admirada como de nenhuma outra mulher, como de nenhuma outra pessoa depois de seu filho. Como ela dizia que iria ser: se lembravam como fora uma mulher realizada e realizadora, e miravam-se no seu exemplo de seguidora do seu filho. E o povo tomou a liberdade de considerá-la como mãe, por considerarem-se irmãos do seu filho. “Temos uma mãe adotiva, aquela que é mãe exclusivamente por amor!” E, com carinho, a chamavam de rainha, a “mãe do rei”.

Mas aí começaram a desvirtuar as coisas. Começaram a exagerar na sua veneração, começaram a usar seu prestígio para justificar a dominação dos poderosos. Sua imagem foi transformada numa espécie de rainha que, de pobre e guerreira, não tinha nada. Matavam e exploravam em nome de Maria! Se esqueceram de quem foi aquela mulher... E foi assim por muito tempo...

Mas eis que um dia, alguém encontra uma estatueta feita em homenagem a ela, mas com a cor do povo. Uma Maria negra, preta mesmo! Numa época em que o negro nem era considerado gente, era como se Maria renascesse pra dar o seu recado: “se vocês me amam tanto, que amem o povo. Porque eu sou do povo!”

E aí foi aquela festa, todos foram obrigados a recordarem da verdadeira Maria. E chamaram-lhe de “Cida”. Cidinha, “uma força que nos alerta”, que vem nos lembrar que o ser humano não tem raça. Que ser pobre não é doença, que o fato de ser simples não deve impedir ninguém de ter dignidade, de ser feliz – muito pelo contrário! E que discriminar seus “filhos” era discriminá-la mais uma vez!

E mais uma vez se lembraram da Maria e a admiraram. E uma nação inteira se rendeu à sua mensagem. E fizeram grandes construções em homenagem à Cidinha, grandes obras em sua memória. E coroaram sua imagem com uma enorme coroa dourada, botaram-lhe um grande manto de veludo azul com detalhes dourados. E fizeram cópias e mais cópias daquela imagem, devidamente coroada e “imantada”, pra que todo mundo se lembrasse dela.

Mas... será que não esqueceram de novo a verdadeira imagem de Maria?...

Hoje é difícil, inclusive, lembrar-se que Cidinha é negra, é do povo. O manto lhe cobre todo o corpo; o pouco de negritude que sobra na imagem é ofuscado pelos belos detalhes dourados. E há muita riqueza, hoje, em torno do nome da Cidinha. Muito comércio estranho, muita coisa rolando. E, paralelo a isso, há cada vez mais pobre sem o direito de ter esperança, mais gente “que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta!”...

Por mais que tenham sido boas as intenções de quem fez tanto estardalhaço em cima dela, o fato é que hoje poucos têm na Maria, na Cidinha, o ideal de mulher que ela realmente foi. Parece mais uma imagem estática, indefesa, que nada pode fazer a não ser chorar diante de tudo o que se faz ao seu redor. E usam-na como amuleto pra problemas do cotidiano, pequenas e grandes curas atribuídas a ela. Mas cadê aquela mulher guerreira, batalhadora, pobre de espírito e de luxos, disposta a doar-se pelo filho, sem perder sua singeleza, sua doçura, sua pureza de mãe?

Onde está a Maria? O que fizeram com a Cidinha?!...

“mas é preciso ter manha, é preciso ter graça, é preciso ter sonho sempre!”...

(JF, 29.08.06)

TEXTO PUBLICADO NO LIVRO "COMPREI JUJUBA!" - www.compreijujuba.blogspot.com