Opúsculo ao lusco-fusco

O sangue que percorre todo o meu corpo

e a chuva que escorre por toda a cidade;

bombeando as preocupações do amanhã

como se o hoje já estivesse frio e moribundo.

Mesmo assim, ainda sinto aquela respiração,

fraca e teimosa, saindo das narinas do hoje.

Ainda sinto o hálito e a penumbra da ira,

oscilando com os feixes de esquecimento

que acometem minha ingenuidade.

Hoje o piano quebrou na tecla si.

Quando tocada, soava mais alto que as outras.

Veja só se a tecla não imita meu gênio,

interrompendo qualquer harmonia,

destoando de qualquer coesão harmônica

e fugindo da própria funcionalidade.

Fantasiei-me quebrando o piano todo,

como é mister de quem se reconhece

no reflexo daquilo que repreende.

Acontece que a minha alma já estava

estilhaçada pela pedra de outras revoltas.

Restava-me, portanto, recolher os cacos

da própria insatisfação, como quem mira

para o cume do próprio destino

e encontra Sísifo carregando o passado.

Já para baixo, no horizonte da minha barriga,

repousam os olhares inquisidores

buscando qualquer sinal de saúde

no corpo e na mente deste desafortunado.

Consola-me saber que o sufoco futuro

será ainda pior que os suspiros presentes.

Ainda estou na fase boa, digo a mim mesmo

sentindo o lado direito do corpo mais frio

que o esquerdo: uma má circulação.

De fato, nada circula muito bem aqui.

Todas as minhas responsabilidades obstruídas

pela autoimunidade dos meus caprichos,

pela tristeza vaporosa e inabalável

de quem não sente tristeza alguma.

Sinto pena apenas de quem ainda espera

que o sol do amanhã seja mais brando

com a pele rugosa e queimada do tempo humano.

Podem ir, ficarei bem sozinho. Ficarei bem.

Cantarei uma serenata ao pé daquela janela

na esquina das aflições, bairro da minha alma.

Se a mulher que ouvir minha voz souber

o quanto sofro por não conseguir chorar e fugir,

tomar-me-ia por um covarde qualquer,

fechando qualquer brecha que permitisse

entrar a luz da minha mesquinhez.

E enquanto gritam os meus afazeres,

escrevo palavras como um vadio de vida ganha.

Enquanto a física arranca-me a pele,

crio armaduras e pinto-as em minha metafísica.

E por mais que sejam onze e meia da noite,

insisto em anistiar o amanhã e reviver

o arfar escasso do hoje evanescente.

Apesar de não haver nada aparente,

tudo em mim é de uma dor descomunal.

Traga-me o remédio e um copo de água,

engolirei a frieza e a irreverência do cotidiano;

máquina de produzir homens fortes

para tudo, menos para o nada. Menos para o nada.

Eduardo Becher
Enviado por Eduardo Becher em 08/10/2023
Reeditado em 08/10/2023
Código do texto: T7904268
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.