Armadilha

A aparente desordenação dos meus pensamentos vai finalmente tomando algum corpo, alguma forma delimitada. Cada palavra carrega consigo uma circunscrição que limita meu ser. Não posso sentir tudo, não posso escrever tudo; tenho vergonha do meu desejo totalizante, de estar em todo o lugar, de ser um fenômeno para além da linguagem, de ser maior do que o tempo. Preciso prontamente encarar a decepção de um parágrafo que não é perfeito, que não desliza pela língua de um leitor imaginário, que não dá cambalhotas sobre as têmporas de meu algoz, que não lhe transforma, que não lhe toca. O que escrevo é ridículo, não tem distinção. Minha veia narcísica pulsa, lateja, retumba: preciso desesperadamente ser identificado em alguma prosa definitiva, encontro-me neurótico, não consigo apreciar a beleza de um instante que passa, estou preso em uma armadilha inconsciente.

Olho através de um espelho, onde há outro espelho, e sei que o leitor quer enxergar essa miríade de reflexos refletindo-se, é o mais razoável que o leitor pode esperar, mas não posso dar isto a ele... não, ao invés da iminente predisposição dos espelhos a se multiplicarem, provocando uma sensação de continuidade... o que ocorre aqui é o inverso. Os espelhos, nesse fragmento infeliz e miserável, os espelhos sequer se refletem, os espelhos são uma muralha que nada dizem. Apenas silêncio entre suas finas membranas. A representação dos espelhos de repente leva uma rasteira semântica e eles não cumprem mais a sua função — o seu nome nada designa. Forma e função se desencontram: nuvens agora são feitas de chumbo. O mundo das ideias é um precipício do qual não sabemos se caímos ou flutuamos. É possível que haja vertigem na inércia?

Da próxima cena desta verborragia sem personagens, não sei. Há cantos deste relato que não habito, portas fechadas à chave, enigmas que não desvendo. Enfim, pela primeira vez, sinto alívio: seja onde for que este texto foi parar, lá não me encontro. O hipotético personagem se desprende de mim e começa a caminhar, ele tem vida própria, ele não é minha imagem e semelhança, ele não é minha virtude. Ele não é meu pecado. O personagem não morre por mim, ele não é sangue do meu sangue, não lhe tenho em meu íntimo. Eu peço perdão ao personagem, pois não lhe mostro sequer compaixão quando o perfuro com um ponto final.

pedro toscan
Enviado por pedro toscan em 06/09/2023
Reeditado em 15/11/2023
Código do texto: T7879021
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