PESADELOS ACORDADOS A BORDO DE UM FAROL NAVEGANTE
Era para ser um ano como qualquer outro, novamente o antigo bandoleiro cigano, adaptado às demandas que lhe impunha a civilização, acabara de se reerguer após dias, debruçado sobre sua escrivaninha tomada por planejadas cartografias. Tinha traçado mais uma vez a rota comercial de costume anual. Percorreria com sua nau os mesmos portos da sua atual fronteira fluvial. Desenhada estava antes de zarpar, a constatação de quase tudo que ia encontrar. Absorto, deixaria cedo e o cais do porto, junto com a maré. Este ano não dobraria o cabo da boa esperança, mais uma vez experimentaria águas de bonança e apenas atracaria em porto seguro. Tudo finalmente se mostrou estável e próspero nos mapas de navegação da estável embarcação.
Preparavam-se comumente tantos outros homens e mulheres do mar, ainda atracados aos seus portos. Logo que estivessem com tudo planejado, adentrariam sobre as águas em dia ensolarado. Em pouco tempo no alto-mar se destacariam grandes veleiros, iates couraçados e navios peixeiros de tamanha potência que não poderiam refrear diante da presença de outras barcaças mais leves e mais coloridas.
Estava tudo assim antes, antes quando o corrente filme de ficção científica ainda não havia saído das telas e passado a invadir a realidade, esta realidade que se negava a oferecer chance de mudança de canal.
E de repente não mais e nem menos que de repente, o timoneiro da nau precisou transmutar sua casa normal em um farol mais que providencial. Todos os planos e planilhas foram rapidamente para a gaveta e em pleno continente, emergiu um timoneiro empunhando aguçada luneta. Era tudo urgente, principalmente e especificamente porque certas cenas deste insólito roteiro, no passado, tinham reprisado nas noites do agora faroleiro. Encontrava-se, portanto, o ator do ato como personagem do mais surpreendente déjà vu, que já tinha tido contato.
Poderia se imaginar que alguém por ter experiência em viajar também sonhando, sobretudo com o conhecimento, spoilers do que poderia ocorrer antes de cada desdobramento, que este mesmo alguém fosse capaz de lidar melhor com a trama, mas não, muito ao contrário.
No mundo dos sonhos, nunca tinha saído vitorioso perante aquela besta invisível. Sim era invisível o organismo, só se via seu rastro de destruição. Por onde a criatura passava deixava o Nada que lá ficava. Aliás, dos aliados da coisa o Nada era um dos mais perigosos para um quase aposentado cigano arruaceiro. Além do mais, havia muitas outras abominações que faziam aliança com o monstro: Apreensão, vinha primeiro como batedora; sua infantaria era Desinformação; Corrupção atuava como canhão; e a Solidão, essa se arrastava sorrateira pelo chão. Em verdade parecia que todos os males se aliaram ao demônio onipresente, que do medo tecia seu maior e pior flagelo.
Desde que fora forçado ao autoexílio, dia a dia ele, o convertido faroleiro, corria. Corria as vistas por cada esquina de degrau, por cada canto de umbral no interior do seu farol. Havia convertido sua janela de luz frontal em escotilha, de forma a mais deixar entrar que sair a claridade. De dentro da sala de máquinas, maquinava seu remoto controle, programado para catar e recolher todo resto de intuição, de centelha ou alucinação que o remetesse ao vigor que sabia, que lentamente dele se esvaía.
Restaria, agora que tempo era o que mais tinha, lembrar, e lembrar por exemplo, de que já havia escapado de um holocausto na infância, e que por isso desde então não parara mais de andar aquém do destino. Inclusive lembraria do primeiro desígnio que leu no estigma transcrito na sua própria palma da mão, confirmando a urgência de correr sempre que seus instintos o alertarem. Passou a crer então depois disso, que viver seria navegar, desbravar o mar como se fossem veredas tão perigosas quanto atraentes. Todavia não esquecia que ainda acalentava certa esperança de que caminhando caminhos sem destino, aquele mesmo destino poderia passar a esquecê-lo também, um dia.
Rememorou que lá no pequeno clã nômade de onde viera, tendo se desgarrado cedo, pouco aprendeu além da astúcia de escapar ileso do mundo comercializado dos adultos. Mas daquilo trazia uma única herança, a desconfiança, que o salvaria de perigos tão trágicos que o fariam ainda mais arredio do que ainda era atualmente.
Quando jovem, sobrevivia atuando como faquir, percebeu que melhor seria que se apresentasse como atirador de facas, em exibições mambembes para as mais variadas plateias. Engano providencial. A distração da avarenta platéia, todavia mais servia aos lucros das vendas de joias, furtadas durante aqueles espetáculos bafônicos.
Mais tarde, com a idade das trevas, foi forçado a assumir a pirataria. Foram muitas as caravelas em que esteve, assim como muitos foram os mares que navegou. Tomou parte em conspirações, guerras e saques. Também suportou grandes dores, solidão e medo nesta mesma fase de sua conturbada existência.
E foi só depois de muito ferido por dentro, que por fora não mais escondia sua destreza ao encarar de frente suas íntimas fraquezas.
Vindo a contragosto voltar a viver em um continente, converteu-se em bandoleiro dos sertões. Montado em seu cavalo gypsy horse, cujo nome era Corisco, varreu todas as terras longe das capitais. Por onde passou foi chamado bandido, raptor, ludibriador e romântico…
Também foi necessário refrescar a memória para saber que depois de viver como lobo-marinho, foi também cão de guarda, leão de chácara e até ave de rapina, sem esquecer inclusive que foi capaz de transmutar-se em cobra criada e macaco velho, quando e se necessário fosse. Naqueles contextos o instinto de sobrevivência falava primeiro, melhor, mais, e mais alto dentro dele.
Era sabido ainda neste período, embora não bem concebido, que tudo, tudo um dia cansa… apenas a vivência esclarece fatos assim. E sendo dessa forma, que bom seria… quando o destino também cansaria, fugiria finalmente dele também.
Foi mais ou menos nesta época que a fera invisível passou a acossar o ainda errante timoneiro dentro de seus sonhos. Tudo se sucedia do mesmo jeito: ia seguindo sempre o mesmo roteiro, perambulando o tal arruaceiro pelas ruas suas, seu original seleiro. Vagava, se ajuntava e se misturava experimentando diversas aglomerações, rodas, bolhas de conversações e diversos humanos pensamentos. Nestes tantos ajuntamentos, era inevitável sentir empatia, inclusive quando o verbo se desentendia.
Recorrentemente quando a discórdia ocorria, o filho das ruas pressentia que se anunciava a aproximação de sua pior tentação. Apesar de não poder ver, sentia no ar a tensão intensificar. A criatura podia voar e se aproximar sem ser notada por quem estivesse ao redor, sem que ninguém além do principal personagem do sonho a pudesse notar. A prioridade imediata passava a ser alertar, convencer todas as pessoas que elas deveriam se preparar, correr e voltar para casa. Mas ninguém ouvia, não parecia que havia perigo para aquelas pessoas e então, no pico das batidas no coração o personagem do sonho fugia, desesperadamente corria, se escondia nos mais estranhos e improváveis lugares, mas deixava uma trilha de medo e novamente a vítima seria farejada e mais uma vez encontrada.
Em meio a fugas e loucas escapadas, grande parte da aflição era voltada para as pessoas que ficavam nas ruas aglomeradas. Um frenético volume de imagem, som e premunição o tempo inteiro só remetiam dor e morte, de sorte que a principal alucinação era a angústia da culpa. Por que não conseguia encarar frente a frente aquele mal, salvar, seu povo, sua gente, seu pessoal? Fosse o mais abissal dos Krakens marinhos, não o intimidariam de maneira tão letal.
Todavia nesse mesmo contexto de trajetória, nem só de pesados pesadelos, mas também de belos e singelos sonhos o timoneiro vivia e dormia. Por exemplo: quem saberia se somente bem mais tarde, tudo um dia não terminaria numa estreita estrada de terra, num pequeno sítio afastado com uma rede armada na varanda? Seria justo, depois da vez de o tempo ser passado em revista, diante do cansado cigano dos mares, tudo finalmente parasse… mas este gadjó não ia parar assim por ninguém, acreditava… por isso, não esperava o tempo, mais rápido levantava e montava seu acampamento.
Mas com isso, essa estranha onda de ter que ficar parado, agora o então homem de farol prendia sua atenção até na sutil variação, vista na refração de uma réstia de sol. Se deixava capturar pela audição ao mais baixo tom, do som de cada gota de chuva que caía. Agarrava com ternura, a textura que sentia nos retalhos da colcha em que ele dormia. Ficava cativo do pássaro que fora assovia e do camundongo que na sala corria. Estava confinado a gosto do desgosto de guardar o último cheiro de maresia. Tudo isso prendia o faroleiro em si, e assim com urgência e veemência ele se continha.
Outro dia, quando era madrugada, sonhou com tanta propriedade que parecia a mais pura verdade. Cogitou intimamente, diga-se de passagem, que poderia ter tido mais uma crise de sonambulismo. De repente estava retornado aos caminhos que percorria nas ruas de sua cidade natal. Só que com um pequeno agravante: encontrava-se completamente nu. Mas, o mais estranho era que os transeuntes que o viam caminhar despido, em pleno caso de flagrante delito de atentado ao pudor, surpreendentemente não o censuravam, ao contrário, o aplaudiam e o reverenciavam inclusive como se aquela performance fosse apenas mais uma de tantas outras já assistidas.
Para deixar ainda mais realista o, digamos, “proibido passeio noturno ao ar livre”, o movimento normal da cidade estava anormal, como estava igualmente anormal a realidade em que estavam todos vivendo, enquanto acordados. Lugares antes bem frequentados fechados, trânsito urbano de carros parados e quase ninguém circulando.
Nesta caminhada alucinante, o errante caminhante parou e se deparou com outra curiosa jornada. Cruzando a larga calçada estavam inúmeros caracóis. Eles sim podem sair, sem sair de suas casas. Ao sentirem que é hora, se projetavam para fora. Livres, carregavam sua cela, sua sala, sua sina.
Não pensavam nos perigos, ou se pensavam não racionalizavam disposição, apenas iam. Iam, mas não deixariam de ficar atentos. Antena ligada ou concha fechada.
Evoluídos os caracóis. Controlam sua temperatura, excretam todo seu muco e não, não precisam de pulmão. Lesmas que se elevam em suas casas móveis.
Hoje, eles cumprirão seus objetivos extremos de cada dia. Diria o faroleiro sonâmbulo que eles podem, que eles conseguirão. Hoje atravessarão aquela via. E nós humanos também.
Enquanto andava, sorria e podia sentir a brisa fria tanto no rosto, fagueiro como todo corpo inteiro. Descalçado, cada protuberância do solo apalpava com a planta dos pés: o ladrilho irregular do calçamento; os blocos intertravados das calçadas; e a grama… há! A grama estava divina, simplesmente deliciosa. Com certeza, foi um dos melhores sonhos que o faroleiro pode sentir naquele contexto de clausura autoimposta.
E para não dizer que foi verdade, tamanho era o risco que corria, inclusive de ser preso em sonho e talvez não mais poder acordar em sua casa, imagine, seguiu o sonâmbulo timoneiro por conhecida estrada, que o levava a uma familiar igreja antiga que nunca estava de portas abertas. Chegando lá podia sentir os odores do lugar, ver as suaves cores, contornos e os típicos barulhos noturnos que ali existiam. E para deixar definitivamente claro que não saiu de verdade de seu lar e farol naquela noite, avesso a religião como era o sonâmbulo desnudo, ele ali se ajoelhou e rezou, pediu com o máximo de fervor para aquela maré que se instalou, passasse o quanto antes.
Tão nítido foi este sonho incomum que memorizou a oração que lá fez de todo coração. A prece dizia mais ou menos assim:
Oh! Deus (Oxalá, Tupã, o que é que há, Jeová?)
Perdoe este bando de elucubrado,
Que na internet se lamentou um bocado,
Pedindo pro ano passado acabar.
Oh! Deus, será que o senhor se zangou,
E por isso toda a terra parou,
Fazendo o mundo parar pra pensar?
Senhor, eu pedi para o ano melhorar um tiquinho.
Pedi pra parar, mas parar de mansinho,
Pra ver se diminuía de tanta confusão.
Oh! Deus, se eu não tenho direito o Senhor me perdoe.
Eu acho que a culpa foi
Desses pobres de espírito. Ouça essa oração.
Meu Deus, perdoe esse povo que fala tanta água,
Que vive perdido e cheinho de mágoa,
Querendo que o mundo vá se acabar.
Desculpe os pedidos a toda hora pra acabar com o “inferno”.
O ano passado poderia até ser eterno,
Se esse vírus o senhor fizesse parar.
Nas tais condições atuais, porém, desconfiava bem como bem sabia fazê-lo. A desconfiança pairava principalmente sobre ele próprio e seus entes próximos. Desconfiava que não se cumpria tal como já se sabia que deveria, com aquilo que nos exige a própria consciência. Nos permitíamos transitar demais segundo as conveniências sociais. Muito ainda não se fazia, por muito medo da rejeição, da exclusão e da sempre presente independente solidão.
Desconfiava, agora mais que nunca, que não fazíamos tanto quanto esperamos do mundo, da sociedade, da vida e até de Deus. Desconfiava que contribuímos pouco, comparado ao tanto que nos esforçamos para sermos reconhecidos por estas mesmas contribuições.
Já tinha quase certeza de que adiávamos demais o presente, ambicionando um futuro idealizado. Possivelmente estaríamos trabalhando para corromper a natureza deste mundo, para que ele se tornasse mais adaptado a nossa condição atual de humanidade por demais desumana.
Desconfiava apenas, pois não tinha como saber quem iria se adaptar melhor e prevalecer. Se este mundo, que se sabe único dentre inúmeros, ou se a raça humana se sairia vencedora, com sua clássica arrogância absolutista insubstituível. Venceria talvez quem mais e melhor conspiraria. Por isso não sabia, e apenas desconfiava e desconfiava sobretudo da certeza.
Desde este então, por precisa razão, passara a caçar até assombração dentro de casa, seu farol navegante, sendo elas almas penadas ou não, estando dentro ou fora de sua visão. Para poder ficar e mais compreender, tinha que escapar não apenas com vida, mas com boa ventura. Sim! Se achava ameaçado pela ádvena besta que ora solta lá fora, não escolhia vítima, e igualmente fugia cá dentro do farol de outras assolações ferozes e malditas.
E por pensar em maldição, lhe vinha à mente mais outra lembrança, como sempre sem querer, lembrava-se novamente de Dúctil. Era Dúctil do tipo que sempre se atentava mais para a alheia vida, que chegava a apequenar-se até para melhor espreitar tudo aquilo que não fosse seu. Não sabendo mesmo a criatura ficar não sabendo, assuntava ainda para evitar ser o assunto em questão.
Queria saber cada vez mais e mais da grama ao lado. Quanto mais sabia daquilo que não tinha, mais se sentia parte do que seu não seria. Quando às vezes se percebia, acreditava Dúctil, viver num cativeiro (e vivia), passava a aspirar e suspirar por sua redenção longe dali, de sua inaceitável vida que não vivia.
Delirava com um mundo dourado do qual acreditava pertencer, pela graça do criador. Porém, Deus, como um gênio da lâmpada, ainda não lhe tinha devidamente concedido o desejo, decerto por descuido. Dúctil não vivia nem a vida que tinha, mas já queria e pedia outra.
Faltava-lhe obviamente apenas um sinal, um aceno dos céus, a deixa precisa para sua inevitável ascensão. Em todo caso continuava rezando, suplicando, perturbando a vontade de Deus em função de sua vontade particular…
E nisso o tempo, que era mais cigano que o faroleiro corria, por quanto à espera de Dúctil imperava. Algumas pessoas se dizem conduzidas, induzidas, coagidas na direção de suas ambições. Se puderem dizer que foram tangidas por motivo de força maior, não terão que encarar culpas pelos meios inescrupulosos que efetivamente as moveram. Ingratos, estes que bem-vivos, não sabem bem-viver.
É, a maré estava mesmo baixa. Todavia o mar em calmaria não o enganaria. Sentia o mais que ancorado Lobo Marinho, que em águas turvas navegaria, com um bom ajuste no foco do farol.
Assim, dormia em pleno dia. Sonhava, mas não via sombra de firmeza no horizonte, dia após dia. E tanto fazia que divagava e até de suas noites enluaradas desistia.
E nessas noites sem dia e dias sem noite, inevitavelmente pensava e pensava mais com sigo mesmo: será que as ruas sentiam sua falta? Nunca as tinha deixado por tanto tempo, sozinhas. Avenidas, ruas, praças, esquinas, becos. O que seria destas formas de vida, sem a sua vida caminhando dentro delas?
Tal como as casas, as velhas casas, as ruas acolheram a este agora faroleiro. Lhe foram abrigo dos pés aos olhos, dando oferta a solidão e o conduzindo pela mão, mostrando várias saídas pelas quais passou quando mais passar precisou. E agora, tudo isso de ficar somente dentro e com a sua casa, com sua leal, oficial e prendada esposa.
Que lhes parecerão, tamanha ingratidão? Decerto não esperavam aquelas vias, que justo aquele corsário cigano, lhes saísse tal qual um pródigo principezinho que abandona seu mundo para sempre, sem dar sequer uma única satisfação.
Esperava que elas estivessem bem. De sua parte, sentia saudades sim. Não via a hora de recompensá-las. Hás havia deixado, exatamente querendo ficar mais tempo nelas jogado. Esperava que assim que o vissem de novo, de pronto soubessem, como tamanhas eram e como sempre seriam suas afinidades familiares.
Haveriam de saber aquelas entidades suas, guias espirituais, que apenas o delas peregrino, fizera outra viagem. E aí então compreenderiam que ele, sua cria, fizera mais um bom uso de todos os ensinamentos aprendidos ao longo dos longos anos ali percorridos.
Iriam não! Irão se alegrar como sempre, principalmente quando perceberem que tipo de ponte se tornou o atual timoneiro de farol. Que agora adulto, sabe ligar um tempo a outro tempo! Que permanece firme apesar das curvas! Que melhorou na arte de saber entrar e sair dos lugares! Se orgulharão dele, quando lhes disser que atravessou um tal congestionamento sombrio, graças a luz amarela do semáforo que finalmente aprendeu a esperar. ─ Tudo dará certo! ─ Otimizava o faroleiro.
Mas a verdade é que o homem em questão, mal podia esperar para reencontrar as ruas. Porém, elas, por sua vez, não perderiam por esperar.
E como também o faroleiro mais era forçado a espera, mais também dormia e consequentemente mais via pesadelo em seus sonhos. Era como se desacordado, todas suas vidas passadas passassem, como ondas uma após a outra: um vilarejo medieval; uma velha casa perto do canavial; uma colônia no espaço sideral; um voo nas asas de um pardal… quantas vidas vivia em sonho… e então ainda mais dormia.
E dormindo, chegaria a viver a morte de seu eu mais ressentido, dormindo como se acordado estivesse. Em outra dimensão, estava lá aquele seu eu sozinho em sua casa trancada. Cercado por seus pertences comprados com o dinheiro de sua aposentadoria por invalidez, rodeado por seu exclusivo e bem definido modo de vida. Garrafas secas e copos pela metade, denunciavam os mesmos dos seus reconhecidos escapes...
Naquele instante ali deitado, aquele eu parado estava tendo um sonho dentro do seu sonho. Outro de seus conhecidos pesadelos. Tinha voltado no tempo, no tempo antes do trauma que lhe fez ser o que era. No tempo em que ele acreditava como acredita uma criança, no tempo em que seus olhos brilhavam com os sorrisos, no tempo em que ele dava sempre tudo de si alegremente, e era feliz assim… e assim era, até que viesse uma grande dor de grave decepção, do tipo mais inesperada e perversa. Foi como se lhe removessem do peito seu coração de menino, e no lugar lhe tivessem posto uma rocha em chamas. Foi também como e quando ele descobriu que se podia chorar por dentro, enquanto seus olhos se ressecavam mais, mais e mais…
Podia enxergar aquele seu eu em sonho, como num sonho profético. Via dentro das entranhas daquele ser, aos poucos e silenciosamente, tudo lá dentro se encher de um líquido viscoso e púrpura. Este líquido que vez por outra entrava em ebulição, subindo pela garganta espumando como leite em combustão, sem demora seria vomitado em seu excesso para fora. Mas por fora mesmo, nada se via ou se sabia sobre as causas, apenas se ouviam e se ressentiam os que se viam próximos, e que sofriam injustamente em consequência daquele sintoma.
No panorama coincidentemente daquela noite, aquele personagem seu não teve chance de pôr para fora nenhuma parte da doença parasitária que trazia com sigo. Não regurgitou amargura naquela noite, talvez por conta do sono ou talvez porque não fosse mais possível agora, tamanho era o avanço de sua moléstia.
Em dado momento o autoexilado no farol foi obrigado a assistir seu eu próprio, de ressentimento sufocar. Seus olhos saltavam para fora, como que absurdamente acordados. Tudo buscava vida em sua face, qualquer vida, a vida que fosse possível, a vida que ninguém quisesse, a mais reles vida serviria naquele instante de horror. Parecia, como se estivesse engasgado, mas engasgado com sigo próprio, afogado em suas próprias vísceras…
Se podia sentir como se fosse verdade, que aquele peito palpitava em um descompasso não antes sentido. Mesmo assim seu eu sempre aguerrido, conseguiu levantar-se do leito e tateando as paredes ainda conseguiu chegar até a porta da rua, trancada como se sempre. De punhos cerrados ele bateu, tentou gritar por socorro, conseguindo apenas emitir urros ininteligíveis por quem, porventura, passasse naquela erma rua em que morava. De qualquer forma, aquele homem agonizante nem saberia como, nem por quem chamar… afinal, nunca dependera de ninguém para nada! Tudo que tinha era mérito somente de seu esforço, e jamais teve que dar o braço a torcer por nada nem por ninguém.
Nem mesmo naquele momento, o personagem do medonho sonho conseguiu diferenciar o que era apenas precisar do que era inevitavelmente depender… e aos poucos a vida o abandonava junto com o pouco ar que resistia em seus pulmões, e foi se arrastando pelo chão da sala até ridiculamente deixar de viver ali, olhando para o teto, como passou grande parte da sua vida.
A sorte é que desta travessia o passado não passaria de mais um sonho sonhado. E por quanto o futuro se esvaia, o presente como o leve ar nos pulmões, se alternaria. Desta feita abdicado, por hora o agora faroleiro, fincava ainda mais firme as mãos naquele seu maleável timão.
Por razões que a própria razão bem conhece, o autoexilado em navio ancorado evitava o passado sempre que podia, e podia assim alternar olhares para bombordo e para estibordo, ainda que os ventos extremos vindo com força dos dois lados fossem os principais culpados da falta de estabilidade, na sua e nas outras embarcações. Era isso porque não, não estavam todas as almas no mesmo barco, mas sim navegavam na mesma corrente marítima. Sabia que olhar para baixo de nada ajudaria, então tentava se concentrar no que via a sua frente. E dentre outros astros no firmamento, se esforçavam adiante para ganharem talvez destaque, as sempre certas pessoas encarnadas, as nossas pessoas estrelas ─ cadentes.
Apressaram-se, adiantaram-se ao futuro que só seria incerto para quem ficasse para trás, ao passo que para quem se determina a ideais, certamente um belo horizonte os aguardaria. Por isso corriam e se lamentariam dos que com e como eles não seguiam. De posse de seu timão, desconfiava o faroleiro que em verdade fugiam os ditos desbravadores. Ignoravam as dores, ambicionados apenas por sabores, que claramente julgavam-se e se auto sentenciavam como plenamente dignos. Quanta pretensão.
Pois, os adiantados desprezavam as bases desta experiência de existência, onde já se nasce chorando e provocando profunda dor no parto. E logo, o trato digestivo sofre ao adaptar-se ao alimento. Cedo, ocorre dor na entrada e na saída do alimento. Só pela boca, nos vinham inúmeros incômodos desde o nascer dos dentes. E o frio, o calor, a fome e a indigestão serão uma constante nessa viagem.
Sabia de dentro do farol, pois tinha sentido antes fora, por causa das suas experimentações, entendia que nos desenvolvemos por entre desconfortos. Compreendia que somos o tempo todo acometidos de inúmeras infecções bacterianas, fúngicas, protozoárias e virais. Porém, nossos organismos costumam reagir heroicamente a tudo, causando-nos inevitáveis febres e consequentemente mais desconfortos. E era aceitável que navegaríamos com e por tudo isso.
Padecíamos ainda de angústia, de dúvida e de medo. Suportamos mais, sentimos muitos sentimentos, sobretudo se não somos correspondidos por estes excessos. Toleramos muitos de nós as moléstias psíquicas, sobretudo atualmente, frente aos embates da moral/ética inseridos nos contextos da política (essa pobre errônea ciência humana). E navegamos mesmo assim.
Naturalmente navegamos, disso nem precisa tanto saber, neste oceano de vastidão e incertezas apostando na sorte, como pescadores. Quando famintos estamos nos obrigamos ao limpo jogo da pesca de peixes, quando vencemos conquistamos o direito de comê-los, sem a obrigação moral de correr desnecessário risco de engasgo com espinhas. O mesmo direito tem os peixes, de nos abocanhar em nossa vacilante distração. Aliás, as presas quando assim capturadas nunca reagem, instintivamente se deixam devorar reconhecendo o mérito do predador, bem como seu demérito naquele infeliz instante.
Nos espaços entre turbulências, concluía o experimentado navegador, quem navega pode considerar que tanto resguardado dentro do farol ou em alto e tormentoso mar, encontramos alegria, prazeres e descanso. Todavia também observamos ufania, soberba e arrogância. Por infelicidade uma parte de nós, por razões próprias, aposta tudo que tem na riqueza material, outros na fama e no orgulho pessoal. Chegam mesmo uns tais a imaginar e a crer que esta vida, esta dimensão e essa “mísera” existência não seriam dignas de tão “sublimes entidades”. Era decerto, o momento para ancorar os ímpetos. Orgulho não é igual à autoestima. Por isso, não somos todos iguais aqui.
Meditava diante daquele estranho desenrolar… por qual razão viria alguém ao mar sem o desejar contemplar? Mas a um ciente navegador não cabia de tudo saber. Pois, chegam “sertos” de nós a tal ponto, que, mesmo conscientes que não passam de bicho-homem, reagem como se fossem deuses. Ignoram para si, que nunca, nada nem ninguém lhes garantiu qualquer “mar de rosas” para que aceitassem viver aqui, como assim o quisessem, para talvez, quem sabe, fazer valer uma existência neste plano enigmático. Todavia, exigem a ininterrupta felicidade aqueles lá.
Suas vivas almas se mostram presas ao vício compulsivo de um imaginário que, dele, viraram dependentes. Passaram com pressa a não só esperar, como quem espera parir sem engravidar, mas também a cobrar, exigir e a se indispor com a vida. Empunhando esfregões sujos como bandeiras, vão intentando limpar o espelho dos conveses alheios. Entorpecidos por suas alucinadas fantasias, não conseguem perceber as próprias imagens embaçadas, por trás do excesso de fumaça que eles próprios reproduzem.
Alguém precisava alertar a grande frota, que ela estava acometida de naus parasitas, que renunciavam a compreensão de que há uma aventura necessária ocorrendo fora de suas expectativas (desleais), que ignoram, ignorantes que são, que uma aventura se vive exatamente pelo desafio que ela representa para o aventureiro e não o contrário. Quantas vezes terão que naufragar estas jangadas mal-acabadas para aprenderem o que não é este mar? ─ Quantas forem necessárias. Inapelavelmente. ─ Diz apenas para si o homem do farol.
A humanidade, por não ser perfeita como exigem as acima citadas “divindades” detidas na terra, não merece a sentença de não ter “dado certo”. O pessimismo, para muito além de Schopenhauer, um notório sedentário, sob qualquer luz racional não passa de apenas mais uma doutrina metafísica, reproduzida por pessoas humanas em franco estado de decadência, inclusive moral, inclusive ética, inclusive de orgulho (ferido). Todo homem ou mulher do mar devia ter consigo essa lembrança.
Sob efeito de profunda depressão, nenhuma máxima proferida em delírio doentio, deveria ser disseminada nem aos sete ventos, nem nas águas e muito menos em terra firme. Melhor mesmo que fossem estas premissas atiradas ao fogo, principalmente em períodos críticos, como é o caso desta travessia forçada da graça do ano de 2020. Pensando bem, em tormenta o fogo ao mar pode não queimar, então para a prancha se manda andar o mau presságio e todo peso morto abordo. Novamente, apenas dizia coisas para si, o reflexivo faroleiro.
Com tantas inevitáveis reflexões concluídas e não definiras para todo sempre, o humilde dono do farol convertido em inusitado veleiro, necessitou bradar palavras transcritas em velas de virtual papel. Nestas ditas grafias o homem propunha uma moral, uma ética emergencial para a já descrita travessia: “pela real condição das regras de navegação, qualquer que fosse o marinheiro, o imediato ou capitão que mareado em desviaria no convés, como fosse ele (sem ser) um profeta apocalíptico, ainda que no fim da vida ou na sobrevida de sua morte, não deverá ser ouvido como se ouve uma pessoa sã. Alguém que assim se revela é criatura já sem esperanças, ou seja, já está, em vida, mais de meio morta”.
Pois, era ao mesmo tempo da janela digital, da tela virtual e da escotilha frontal que o timoneiro de dentro do farol percebia tudo o quanto era sinal, percebia que morria de falência total um monte de projeto particular de particular ideal. Sozinhos, não tinham forças plausíveis para determinar que a completude do gênero humano “não tinha dado certo”, e sem serem justas alternativas, morriam à míngua. Eram erradicados como doenças de doenças, apenas sintomas depressivos e nunca, nunca uma (mais outra) verdade absoluta. Agora lá fora, somente os que viviam, conseguiam valorizar a vida.
Toda hora espreitava a morte e sempre assim seria. Sobrevivia qualquer existência que fosse bem vivida, reconhecida em valor inestimável, sobretudo na iminência de um possível fim. Nem os perigos do mar de fora, nem os desafios do oceano de dentro e nem tão pouco os obstáculos ainda mais abissais, motivariam a desventura de deixar de aproveitar esta maravilha de aventura. Aqui, justa crença para qualquer galé.
E por falar tanto em valores do mar, não custava ao faroleiro registrar nesta vela quase tecida, a sugestão em bom tempo de ser esquecida vez em quando, as mãos ao timão. Não faz mal deixar acordar sonhos do tipo sonhados, desses que se pressente bem acordado. Este seria seu último anseio revelado, e que não haveria de ser o derradeiro… certo dia quase meia-noite, estava debruçado na proa de sua nau flutuante, confiante na suave luz refletida de sua janela/escotilha quando teve a audição. Há! Sim, de lá foi possível escutar a chegada anunciada de mais um fim, o dia em que acordaremos deste agora iminente e recorrente pesadelo.
Não. Não se trataria de previsão nem outro tipo de doutrinação, tratar-se-ia antes de mais leve, porém permeável pressentimento. Coisas de otimista/realista. Pois pelo dom exclusivo dos que sonham sonhos visíveis, o faroleiro pode ouvir em meio ao rebentar das ondas, inúmeros gritos estridentes, que ecoavam do próximo presente. Estes sons reverberavam pelas ruas e pelas redes virtuais em polvorosas. Ouvia-se apurando os sentidos bem no fundo dos ouvidos, muitas vozes dizendo que o céu novamente estava renascente e alaranjado para todos. O conjunto de ruídos possivelmente vinha de inúmeros portos, com muitos barcos atracados. Pareciam vários e variados logo ali aglomerados. Nitidamente suspiravam aliviados e simplesmente permaneciam juntos, abraçados enquanto inclusive suas almas gritam de satisfação.
Na visão dos que ali adiante estão, estariam eles dispostos ao que pudesse vir depois de mais um e de outro pôr-do-sol. São conservadores, são revolucionários, mas não mais competem em achaques por um filete de vaidosa luz. E a vida, como ela continua ditosa, se deixa ficar lá à-vontade em um meio bem menos vil… assim assegurava o que se ouvia do farol.
Do ponto de vista em questão, aqueles estarão livres de futura previsão, lá desnecessitam de expectativas. Não poderia haver medo naqueles olhares futuros, apenas lhes brilhará faróis da esperança. Os sobreviventes que de fato vivem naquele presente, se deixavam mutuamente viver sem impor a nenhum, nenhuma sombra de dedo na cara, por mais higienizada que qualquer mão pudesse aparentar.
Como sinfonia de gargalhada que se aproxima lentamente além da neblina, e contamina de euforia quem a escuta, traziam a impressão de que aqueles que até lá conseguiram navegar, puderam compreender que só são sonhos acordados, aqueles que não forem vividos.
E foi este o mais recente sonho que se acordou dentro do farol, que o permanecido peregrino vivenciou sentado em sua cadeira de balanço, brindando a vida com chá gelado de hortelã e camomila, enquanto contemplava pela sua janela, escotilha e farol, mais um controverso, porém grandioso espetáculo da natureza.
E depois o resistente timoneiro conseguiu adormecer contente. Consciente que seria em nome das possibilidades, que correntes marinhas oferecem a uma nau, uma nova chance, para que a embarcação não mais permaneça à deriva. Aguardaria, com sabedoria de navegante, um instante preciso para lançar-se ao desconhecido. Agora deveria o espírito renovado de timoneiro assumir o controle do corpo, da mente, de toda a embarcação e com toda a expressão de um verdadeiro farol flutuante. Ou de peregrino farol independente de destino.
No raiar da manhã seguinte, não importando se essa manhã caísse a tarde ou à noite, talvez tomasse humana providência como barco aceso na serração. Quem sabe se livraria sem culpa da estupidez, a começar pelo despertador com todos aqueles seus chiliques? O bicho poderia ser atirado contra a parede tão logo a coisa irrompesse descontrolada, e afinal parariam seus ponteiros espatifados pelos quatro cantos serenos, lúcidos e agradáveis da sala de máquinas.
Depois disso pensaria, certamente pensaria se içaria esta vela engarrafada para jogá-la aos oceanos. Pois, que se viver não é preciso, navegar continua precisamente necessário!
No mais, este desgastado casco em seus remendos se mostra firme.
Que sopre então o vento…
Eis um fim.