A fresta do muro
museu de imagens do inconsciente. méier, zona norte do rio. pedro: quarenta e sete anos. há vinte faz tratamento no hospital psiquiátrico. esquizofrenia paranoide. mora com familiares. não conheceu nise da silveira. pinta telas com tinta guache. suas obras estão no ateliê do museu. é “cliente” do hospital, mas não concorda com o termo, pois não está comprando nada. ri constrangido. está em acompanhamento só com a psicóloga, pois o serviço está sem terapeuta ocupacional. - porto alegre tem residencial terapêutico? o que adianta ter, se morador de rua não pode morar. - os enfermeiros aprendem a mentir que os médicos estão numa intercorrência? isso parece um protocolo. - meus últimos quatro médicos não escutavam. como pode um doutor não ouvir? teve quem não falava. ou que só medicava. pra tudo eu devia tomar comprimido: pra apresentar trabalho na escola, pra tirar dente. aí vou viciar, né? - mas o pior médico foi um que dizia pra eu não pensar. como assim parar de pensar? pedro almoça no hospital, e retira do bolso o ticket amassado que ganha da assistente social. diz que ali todo mundo tem transtorno. não é só sofrimento. sofrimento até cachorro tem. - você é professor de que? na turma do meu irmão, dos trinta alunos, só um passou de ano. o restante reprovou. com nota meio, um vírgula cinco. e quem passou era o líder da turma. é um absurdo. quem reprovou foi o professor. pedro veste uma camiseta preta dos beatles. carrega uma pasta. faz perguntas. ouve. fala pausadamente, com dificuldade. mas é certeiro. lembra uma música dos rolling stones. canta um trecho. em inglês. precisa ir porque é hora do almoço. aperta minha mão. os cadeados. as grades. o cinza. os guardas. os muros. é preciso limar os muros. pedro se despede. até nunca mais.