"Interstício doloroso" - e a importância da escrita

"As vezes, por influencia não sei de quê, talvez um som inaudível para o consciente, uma palavra, uma imagem não processada de todo, desce-me na alma um dia inteiro de angústia. De súbito, como quem leva um susto, deixo de ser claro e comum como o dia, e todo o oculto por baixo da paisagem iluminada de amarelo-açafrão irrompe nas minhas sensações desorientando-me os pensamentos em direção a um abismo vital.

Deixo de notar as flores, ouço sem ouvir a quem me fala, deixo de sentir o azul-celeste por trás dos algodão-sem-doce que lentamente movem-se no céu amargo de mim mesmo.

A incerteza penetra-me até as raizes do ego. Eu próprio me torno incerto como emaranhados de vielas esburacadas na favela das sensações. Cada pensamento traz consigo um embate, uma luta; os desejos, os sentimentos umidificados como brumas na noite interior da alma molhada de angústia.

Tenho sono quando a vida me traz a consciência turva da minha ignorância. Tenho sono na atenção. E em mim tudo é pesadelo. Ah, como queria dormir!

Sei que tudo isso é sonho, que o que sentimos é uma sombra de nossa realidade imaginada. E pesa-me o saber disso como um fardo na inteligência emocional.

É por isso que escrevo, sonhando acordado o pesadelo inútil de minhas ilusões sem causas..."

***

Há alguns anos escrevi esta prosa a qual intitulei de "Interstício doloroso" com o fim de dar expressão a uma angústia que constantemente me assolava, e ainda assola. Hoje, ainda mais angustiado, porém mais forte, vejo o quanto a escrita é importante para o processo de criação de si. Em um tempo onde a dor é renegada do espaço vital, capturada pela farmacologia, entendo mais do que nunca a importância da arte de escrever. Eu escapei dos remédios, dos sacerdotes e psicólogos por meio da expressão artística de minha dor, tirei dessa expressão o prazer de sofrer. Eu sofria para criar. Sofro, logo escrevo.

O que observo hoje em dia é a falta de sentido do sofrimento, a interpretação cristã da existência já não dá conta do sofrimento, restou um buraco no vazio cavado pela pergunta "por que e para que sofrer?". O sofrimento foi rebaixado ao mero fisiologismo, perdemos a dimensão estética da dor. É triste, mas as novas gerações, capturadas nesse sistema, serão presas fáceis, pois não haverá nenhuma interpretação que simbolize a dor para que o espírito possa fluir de dentro pra fora. Falta a estética da dor. O fluxo vital está preso ao corpo, adormecido pelos remédios e fórmulas de positividade tóxicas. Uma sociedade doente é o que temos aí, afastada de seu espírito artístico, dependente da cura que ao mesmo tempo envenena.

Dito isso, é só lamentos. Somente nós, os sonhadores, podemos fazer alguma coisa. Precisamos nos aliar, sair de nossas cavernas e nos fortalecermos juntos. Somos semeadores, cultivadores da semente da vida.

Fiódor
Enviado por Fiódor em 14/07/2023
Reeditado em 14/07/2023
Código do texto: T7836618
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.