Memória fantasmagórica
Como será que está do outro lado do Atlântico? Aqui é outono, um brilho dourado, uma tarde acinzentada. As folhas caídas no quintal conversando entre si, num ritmo calmo e interessado. Aqui, o outono venta frio, corta selvagemente os lábios, faz assobio na janela quando você passa e quando não há ninguém. Revela perfeitas tardes de domingo, e aproveito para visitar túmulos, tentando, de certo modo, ressuscitar uns fantasmas e esmaecer outros. Isso serve como um desfibrilador para um coração fibrilante. Um cenário para retaliar-se, diluir-se em memória.
Você permitiu abrir seu manual, me deixando impressionada com cada letrinha, com seu mágico poder espectral. Parecia uma possessão, você me tinha por inteira. Confesso, ainda me tem. Não me sentia cansada, sua energia me sustentava. Enquanto você, sempre com suas parábolas, seus enigmas, me dizia que já vivia há muito tempo, me fazendo sentir medo e, ao mesmo tempo, curiosidade. As coisas que esperava que eu não perguntasse, a idade que eu não acreditaria... Neste momento, imaginava a Bruxa Morgana do Castelo Rá-tim-bum. Uma feiticeira de 6.000 anos.
Mas então, há uma dor no peito palpitante. É tão certo quanto cair chuva quando as nuvens estão negras, você é quem realmente quis assim. E eu me sentindo uma peça de lego num cesto de brinquedos. Você, sem tempo para os meus fantasmas, sem tempo para mim.
Eu, realmente, esperava que pudéssemos voar, nos curar, ou nos matar. Morrer também é uma cura. Mas você se esvaiu. Deixando a presença de beijos que ficou no porvir, e declarações suspensas nos lábios.
Entre os arbustos, uma silhueta surgindo do éter, um anjo ou um demônio? Ou apenas se trata de uma memória fantasmagórica, que resolveu minha visão circundar? Dos males o menor. Por que não o maior? Assim não restaria dor.