MEU PRIMEIRO CONTATO COM A MORTE
Meu primeiro contato com a morte não foi, como não poderia ser, muito lucrativo para mim. Menino de 9 ou 10 anos, convivi com uma tragédia infantil no meu bairro. Dois amigos, um da minha idade e outro, de 12 anos, resolveram brincar, como todo menino, de bandido e policial. Mas havia uma espingarda de verdade, carregada, e o policial, de 12 anos, matou o bandido, de 9 ou 10 anos, após render-lhe e tê-lo sob sua mira com as mãos para cima. O crime abalou o bairro. Creio que abalou a cidade. Eu tinha duas calças compridas na época. Um feito para um garoto da minha idade. Acontece que o morto não tinha nenhuma calça comprida, andava de calções e até nas ocasiões especiais era assim que se apresentava. Minha mãe tocada por solidariedade à família do morto, família amiga do morto, resolveu doar metade das minhas calças para que o menino pudesse ser enterrado como gente grande.
Não lembro de ter protestado ou criado qualquer obstáculo para que parte de mim fosse enterrada com o menino morto. A calça comprida representava para mim, e para qualquer outro guri na época, o passaporte para o mundo dos adultos. Uma espécie de poder, de emancipação. Eu tinha apenas duas e dei a minha melhor para vestir para sempre aquele menino, um irmão que morava há uns cem metros da minha casa, mas que não comungava comigo das mesmas brincadeiras. Mas ali estávamos agora, ligados para sempre, pela eternidade, através das nossas vestes. É uma ideia que me apavorou na minha meninice mas que me oferece um certo alento na minha vida adulta.